Peço licença para voltar a um passado recentíssimo, mas em que o tarifaço de Donald Trump e a tornozeleira de Jair Bolsonaro ainda não haviam sequestrado a vida política e econômica do Brasil.
A Folha tem mostrado disposição para buscar vozes do empresariado brasileiro e expor os pensamentos de representantes do setor produtivo. Sem o mesmo ânimo para checar o conteúdo, porém, o jornal acaba dando espaço a narrativas que, se não são de todo fantasiosas, tampouco colaboram para o avanço da discussão de rumos e melhorias para o país.
Começou com o “rei do ovo“. O empresário Ricardo Faria, da Global Eggs, foi ouvido pelo jornal em meados de junho, dizendo que era “um desastre contratar no Brasil pois as pessoas estão viciadas no Bolsa Família”. A polêmica foi instantânea, e a frase se adiantou à campanha do governo federal que reativou o mote “ricos contra pobres”.
É justo que se reproduza a impressão do empresário. Mas, dois dias após a publicação do “rei do ovo”, a própria Folha colocou no ar reportagem que rebatia os argumentos usados por ele para desqualificar o impacto do programa no mercado de trabalho.
“Contrariando ‘rei do ovo’, emprego formal avançou mais entre pobres”, afirmava o título do material. “Apesar do aumento, a partir do segundo semestre de 2022, do valor do Bolsa Família para cerca de R$ 600, a taxa de desocupação hoje é menor do que há dez anos, quando o programa pagava menos de R$ 100 por pessoa.”
Reações contrárias às falas do empresário eram sobretudo institucionais: ministro da Fazenda, ministro do Desenvolvimento Social, sindicalistas. Dentro do empresariado não haveria quem pudesse retrucar essas ideias? O leitor ficou sem saber, porque, fora governo e sindicatos, o que se viu no jornal foi uma trilha de opiniões que ecoavam o “rei do ovo”.
Roberto Campos Neto, ex-presidente do Banco Central e agora no Nubank, escancarou a questão: “Vários empresários falam a mesma coisa, que tem vários estados no Brasil que têm mais gente que ganha Bolsa Família do que trabalhador de carteira assinada”. Se isso não corresponde à realidade, como afirmou a reportagem da Folha, haveria também questões mais complexas a explorar sobre a permanência dessa ideia entre o empresariado.
Campos Neto continuava: “Ninguém está estimulando que não tenha o programa. A grande pergunta [é]: será que o Bolsa Família está gerando informalidade? Existem evidências. O discurso de ‘nós contra eles’ é ruim para todo mundo”.
As críticas, por óbvio, podem e devem ser feitas, até porque residem nelas as chances de melhorar os programas. Mas isso não funciona se o jornal se prende a uma ideia só, sem possibilidade de contradição real.
Pior ainda é quando serve de plataforma para a divulgação de informações falsas.
Com outro título chamativo (“Idiota é quem trabalha com carteira assinada, diz presidente da Fiemg“), a Folha trazia um dado inverídico sobre a questão Bolsa Família x trabalho: “O cara que está há 20 anos no programa social se aposenta aos 45 anos”, dizia em entrevista Flávio Roscoe.
A afirmação não resistiria a uma checagem simples, já que a idade mínima para a aposentadoria dos contribuintes de baixa renda também é de 62 anos para mulheres e 65 anos para homens. Mas a ideia aparecia duas vezes ao longo do texto, sem que houvesse questionamento da parte do jornal nem contraposição dos dados.
Apenas após duas cobranças de leitor via ombudsman as informações de contexto foram inseridas. Isso ocorreu uma semana depois da publicação original, portanto já distante das maiores ondas de audiência.
“O entrevistador não só não contestou a mentira do entrevistado como também a reproduziu sem crítica na chamada da entrevista. Isso não é jornalismo sério”, escreveu o leitor Ricardo Knudsen.
Para ele, a solução do jornal também não foi boa, por não ter dado o devido destaque à correção. “A prática do ‘Erramos’ é insuficiente e ineficaz. E é particularmente nociva quando parcelas da população em situação de fragilidade são difamadas como oportunistas que se beneficiam inescrupulosamente de recursos públicos.”
Outro problema, na ponta oposta, é que a Fiemg e seu presidente dizem não ter sido consultados pelo jornal para explicar a declaração nem foram avisados do “Erramos”. Procurada pela ombudsman, a assessoria da Fiemg afirma que houve mesmo equívoco na afirmação sobre a aposentadoria.
Não vai ser possível discutir os muitos pontos sensíveis da economia brasileira sem que as cartas estejam na mesa. O jornal precisa garantir seus próprios padrões de qualidade. Sem isso, o debate vira mais uma mentira.
Fonte ==> Folha SP