Todo dia ela faz tudo sempre igual.
Acorda o filho às seis horas da manhã, passa a camisa, põe na mesa o jornal,
Faz o café, espalha requeijão no pão.
“E depois vai trabalhar”.
Toda tarde ela bate o cartão,
sai correndo da reunião,
bate roupa, pendura no varal,
corre pro pediatra, pra natação, pro futsal.
“Pra depois ir descansar”.
Toda noite ela serve o jantar,
escuta do marido “vou ajudar”,
com a boca de favor,
antes de apagar babando no sofá.
Todo dia ela pensa em dizer não, mas acaba deixando a vida levar…
Por hábito, por cansaço, por aquilo que já foi amor —ou pelo que seria amor um dia. Passam os dias. Ela passa roupa, passa o café. Passa raiva. Passa pano. Aguenta chilique do filho, a folga do marido. Sem folga. Sem fôlego. Sem adicional noturno, hora extra, férias, 13º. Sem plano de carreira. Sem por favor nem obrigado: ela é automaticamente obrigada. Aguenta até não aguentar mais. Até que resolve parar. Junta partes da vida não vivida, enfrenta o medo, a insegurança, e diz: chega, não mais.
Então ouve do advogado —que seria dos dois, mas pago por quem tem o dinheiro— o conselho-amigo: “Agora você vai ter que se virar, querida, aprender a trabalhar para se sustentar”. Foi exatamente por tudo isso que ainda chamam de “nada”, que uma dessas mulheres cotidianas se tornou protagonista de uma decisão inédita do STJ. Em julgamento histórico, o tribunal reconheceu o direito da mulher a receber R$ 4 milhões de indenização por alimentos compensatórios, depois do fim de uma união estável de 24 anos. Seu ex é um profissional exemplar. Ela, uma amadora exemplar. Ele prosperou profissionalmente. Ela ficou com as renúncias.
“Mas quatro milhões só por cuidar da casa?” Sim. Quatro milhões por fazer tudo sempre igual. Pela organização do lar (deles), pela criação dos filhos (deles), pela estruturação da família (deles) e pela carreira (dele).
A decisão, embora inédita no valor, segue a linha que a Justiça já vinha traçando: o reconhecendo jurídico, econômico e social do trabalho doméstico não remunerado. O projeto do novo Código Civil vai além: propõe que o trabalho doméstico seja contabilizado como contribuição efetiva ao patrimônio da família. Um avanço tardio, mas necessário.
Enquanto o direito tenta alcançar a realidade, ressurge a romantização da dependência: as tradwives, esposas tradicionais, que chamam servidão de privilégio, dependência de vocação, de “escolha” o que aceitaram como destino. Quase nunca estão sozinhas. Levam essa vida “digna” desde que o companheiro pague a conta de quem paga essa conta. Conseguem se dar ao luxo da submissão porque há outras mulheres em pé —babás, cozinheiras, faxineiras— trabalhando para que elas possam posar no Instagram sobre a beleza de ser submissa.
Já a maioria das mulheres não conta com esse aparato instagramável. Ou não consegue trabalhar, ou cumpre jornada tripla, vivendo entre a exaustão e a culpa por não se sentirem suficientes em nenhuma das funções.
Não é vingança, nem prêmio-divórcio, nem estímulo ao litígio. É justiça, uma tentativa de reparar o desequilíbrio, a divisão desigual dos papéis, a carreira abortada, a invisibilidade, a dependência econômica que quase sempre vem junto com o jogo do controle emocional.
São histórias de quem ficou fora do mundo enquanto o outro construía o seu. E que um dia decidiu não fazer tudo sempre igual.
Fonte ==> Folha SP