Uma vez mais, a ciência teve de expelir um parasita. O artigo “Síndrome pós-spike: solução simples com resultados resolutivos, relato de cinco casos”, publicado pela desconhecida IDCases, descrevia uma nova condição clínica supostamente causada tanto pelo SARS-CoV-2 quanto pelas vacinas de mRNA.
Assinam a obra Roberto Zeballos, Mariely Helbingen, Paulo Melo, Francisco Cardoso Alves, Caio Salvino, Ewerton Seródio e Edimilson Carvalho. A manobra foi criar uma síndrome (pós-spike ou spikeopatia) a partir de outra bem documentada (pós-Covid ou Covid longa). Esta é consensualmente reconhecida (CDC, OMS, NIH etc) como uma condição decorrente da Covid-19 (não das vacinas) que afeta milhões. Aquela não existe. Como a ciência não trabalha com ficção, o artigo foi despublicado.
Estaríamos diante apenas de hipóteses inverossímeis, métodos frágeis e conclusões exorbitantes? A “spikeofobia” é isso tudo, mas talvez mais. Segundo reportagem do jornal Estado de S. Paulo, Zeballos, Cardoso e Melo teriam lucrado com vendas de conteúdo online, consultas particulares e protocolos terapêuticos para a “nova síndrome” —com direito à eclética ivermectina. No artigo, porém, declararam não possuir conflitos de interesse, outra falta ética entre tantas.
A situação não é inédita. Em 1998, Andrew Wakefield protagonizou um dos maiores escândalos científicos modernos ao publicar, no The Lancet, um artigo fraudulento que sugeria associação entre a vacina tríplice viral e o autismo. Investigações posteriores revelaram que recebera pagamentos substanciais de advogados interessados em processar fabricantes de vacinas.
Além disso, buscava vantagens comerciais: havia submetido pedido de patente para um imunizante concorrente à vacina tríplice e planejava vender kits diagnósticos para a suposta “enterocolite autística” – esquema que, segundo documentos obtidos pelo jornalista Brian Deer, projetava faturamento superior a US$ 40 milhões anuais. O caso culminou na cassação de seu registro pelo Conselho Médico Geral do Reino Unido e na retirada definitiva do artigo.
No Brasil, o negacionismo vacinal corre em ondas. Surge na resistência pré-científica do início do século 20, marcada pela desconfiança no Estado; amaina durante as décadas de 1970 a 2000, quando o Programa Nacional de Imunizações sustentou coberturas exemplares; infiltra-se na primeira era da desinformação digital, nos anos 2000, com boatos importados de movimentos antivacina estrangeiros; ganha tração com a polarização pós-2016, quando a recusa vacinal vira marcador identitário; e atinge seu ápice na pandemia, com o negacionismo estatal bolsonarista.
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É nesse terreno da pós-verdade que floresce no país o negacionismo de mercado —a conversão sistemática da pseudociência em commodity. Há quem invente “deficiências hormonais” para vender anabolizantes; e quem crie “síndromes pós-vacinais” para prescrever protocolos detox. Na certeza da impunidade —e diante de um público aturdido pela infodemia— proliferam os ilusionistas sanitários: agentes que descobriram no negacionismo um negócio extremamente rentável.
Para conter a ameaça, o Ministério da Saúde promete acionar conselhos de medicina, plataformas digitais e Ministério Público. Os primeiros, porém, abrigam certos profissionais que defendem publicamente teses pseudocientíficas —como a spikeofobia—, o que compromete sua capacidade de resposta. As segundas, escudadas na deturpação ética do conceito de liberdade, obedecem apenas ao imperativo do engajamento, do qual o negacionismo é sócio. À saúde pública, resta confiar na atuação firme da Justiça.
Fonte ==> Folha SP