Um traço importante de regimes totalitários é seu modus operandi na sociedade. A sociabilidade totalitária hoje no Brasil cobre quase a totalidade do mundo das letras, mas esse fenômeno não recebe a devida atenção dos especialistas.
Adiantaria uma hipótese que pode parecer radical aos olhos dos desavisados: suspeito que a natureza do social seja sua vocação irresistível ao modus operandi totalitário. Se nos for dada a oportunidade de novo de linchar pessoas em público, o faremos sempre com gosto. Com a mesma fúria do passado.
O “amor à democracia” é a maior mentira do mundo contemporâneo. Permanecemos bárbaros: o que importa é esmagar aquele que é meu adversário. O resto é papo furado. É essa a mensagem da polarização hoje que ninguém reconhece. Os tomates podres são guardados com ódio em nossos armários de cozinha.
Essa hipótese, que pode parecer radical, mas que na verdade é banal, implica que o maior inimigo da democracia são as próprias pessoas. E nisso pouco importa a conta bancária, os títulos de doutorado, o número de línguas que se fala. A tolerância de quem disputa o monopólio legítimo da violência tende a zero.
O pecado capital na democracia é o ódio implícito às pessoas que não concordam comigo. Raras são as exceções e, quando encontramos uma, sentimos o odor do milagre no ar. O resto é blá-blá-blá. A democracia é uma utopia das elites intelectuais, embora elas também guardem seus tomates podres, com fúria, nos armários de suas cozinhas.
Hoje, no Brasil, quem tem a chance de praticar essa sociabilidade totalitária é a esquerda, mas, se fosse dada a mesma chance à direita, ela faria a mesma coisa. Uma vez tendo os dispositivos sociais certos, ela também praticaria a exclusão social de quem é de esquerda. É da natureza da vida na polis a destruição de quem não pensa como eu. O resto é blá-blá-blá.
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E quais são esses dispositivos sociais em jogo? O primeiro da lista é quem detém o poder de convidar pessoas para jantares que são verdadeiras redes de contatos, tanto para amizades quanto para espaços de trabalho. Pessoas indesejáveis são radioativas quando uma sociabilidade se torna totalitária. Todo mundo sabe disso, mas mente.
Os judeus eram radioativos na Alemanha nazista, muito antes de serem levados ao matadouro. Os dissidentes eram radioativos na União Soviética, antes de serem enviados ao gulag. Pais podem exercer esse poder de condenação sobre os filhos, quando eles se relacionam com indesejáveis, sendo o caso inverso também verdade óbvia para quem vê a realidade. Nisso pouco importa a geração, a idade ou o quanto a cabeça é aberta.
O processo vai muito além da exclusão social propriamente dita, ou seja, a exclusão do ciclo de amizades. A sociabilidade totalitária inviabiliza empregos no mundo de hoje e também inviabiliza patrocínios —o branding e o marketing, por exemplo, são formas ativas de sociabilidade totalitária no âmbito do trabalho.
Essa forma de sociabilidade busca a destruição dos mecanismos imediatos de sobrevivência daqueles que não merecem viver ou sobreviver na sociedade em questão, quando tomada por tais dispositivos. O Estado exercerá também sua violência, jogando sobre suas vítimas toda sorte de mecanismos destrutivos: fiscalização, multas, processos judiciais, bloqueio de contas, desapropriação de posses, enfim, leis que visam excluí-las do Estado de direito.
A universidade é um espaço em que esse tipo de sociabilidade totalitária é evidente —só ignorantes e ingênuos creem que a universidade seja uma instituição democrática, pois ela é o oposto disso. Instâncias colegiadas votam medidas que visam destruir a vida acadêmica de seus desafetos.
O alcance desses dispositivos atinge inclusive os alunos dos desafetos daqueles que detêm o poder institucional, dificultando o acesso a bolsas, financiamentos para ir a congressos e aprovação de projetos para mestrado ou doutorado. A intenção é apagar os rastros dos seus desafetos para as próximas gerações.
O mesmo procedimento ocorre no mercado editorial, nas livrarias que boicotam autores indesejáveis ou na produção de feiras literárias. Esses dispositivos buscam, especificamente, aquilo que se chama de apagamento, que se constitui no cancelamento do desafeto da história enquanto tal.
Assim como a vida acadêmica e as casas editoriais, a mídia, na intimidade das redações, pode se constituir num instrumento poderoso de destruição de desafetos políticos. No Brasil, a sociabilidade totalitária ainda não cobre o país inteiro, mas o mundo das letras.
Fonte ==> Folha SP