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Ao contrário de Trump, Rosseau seria cancelado – 07/03/2025 – Mario Sergio Conti

Uma mão é capturada em dois momentos: á esquerda segurando firme uma pedra, e à direita, em tamanho maior arremessando-a.  Ao fundo das mãos há um céu azul com nuvens, e próximo às pedras estilhaços vermelhos.

Jean-Jacques Rousseau era 12 anos mais moço que Donald Trump quando sentou para almoçar com a mulher, Thérèse, depois de um passeio pelo jardim do palácio do marquês onde vivia de favor. Aos 66 anos, estava um caco. Alquebrado, afastara-se dos amigos e tinha mania de perseguição.

Já o Nero da nova Roma exalava empáfia ao subir à tribuna do Capitólio, na terça-feira. Trump parecia ter menos que seus 78 anos ao dardejar olhares belicosos à plateia planetária que acompanhava sua arenga interminável, toda ela embasada em mentiras.

Com Rousseau ocorreu o contrário. Fora a verdade que norteou seus passos até 2 de julho de 1778, quando uma apoplexia o fulminou. Faltava pouco para pôr o ponto final em seu último livro, “Devaneios do Caminhante Solitário”.

Nele, o filósofo se entrega a um frenesi classificatório: “Mentir para vantagem pessoal é impostura, mentir para vantagem de outra pessoa é fraude, mentir para prejudicar é calúnia”. Mais: “Mentir sem proveito ou prejuízo para si ou para outrem não é mentir. É ficção”. Mais: “Não se poderia dizer que [alguém] mente se dá dinheiro falso a um homem a quem não deve”.

Embanana-se com tantas nuances: “Quantas discussões embaraçosas, das quais seria fácil livrar-se dizendo: sejamos sempre verdadeiros, mesmo com todos os riscos!”. Convenhamos, exortar Trump a ser veraz não fará com que diga a verdade.

Considera que às vezes se mente não por maldade, mas vergonha. Dá como exemplo um caluniador de 16 anos: ele. Roubara um adereço da patroa e, perguntado se fora ele, ficou com vergonha e pôs a culpa em Marion, uma empregada. O remorso o roía.

Explica o título do livro: como só pensa para valer quando anda ao léu, devaneia. Se para Descartes o raciocínio precede o ser —penso, logo existo–, para o autor de “O Contrato Social” a divagação molda a filosofia; a natureza funda a razão; o selvagem é bom e a sociedade o corrompe.

Há quem jure que Rousseau estava paranoico, achava que era vítima de complôs quando escreveu “Devaneios”. Mas a igreja o pusera no index; apedrejaram sua casa em Môtiers; figurões da Genebra natal o execravam; rompera com numes do Iluminismo –Condorcet, Hume, Voltaire.

Fosse hoje, Rousseau diria que foi cancelado. Assim abre o livro: “Eis-me então sozinho sobre a terra, tendo só a mim como irmão, parente, amigo, sociedade”. Lamenta que logo ele, “o mais sociável e amável dos humanos”, fosse apartado da comunidade. Mas, quanto mais se isolava dos homens e comungava com a natureza, mais se sentia sábio, iluminado.

O auge desse processo de alienação mística ocorreu na tarde de 24 de outubro de 1776, quinta-feira. Ao perambular pelas cercanias de Paris, um canzarrão dinamarquês o abalroou e ele caiu de cara no chão. Quatro dentes se enterraram no maxilar. O braço e o joelho esquerdo se deslocaram. O lábio superior rasgou até o nariz. Seu sangue “corria como um riacho”. Esborrachado, desmaiou.

Ao acordar não sabia onde estava nem quem era. Contudo, concluiu: “Nasci para a vida naquele instante”; “sentia em meu ser uma calma maravilhosa”; “sou incapaz de encontrar algo comparável em qualquer um dos prazeres”. Teve um troço, entrou em transe?

Na manhã seguinte, o irracionalismo despontou redondo como uma fake news. Paris inteira achava que Rousseau morrera. Até o chefe de polícia mandou o secretário se certificar de que continuava vivo. Ressabiado, o filósofo atribuiu a mentira à maledicência de inimigos.

À certa altura, “Devaneios” parece pôr em dúvida a oposição entre verdade e mentira, certo e errado: “É preciso calar ou dizer a verdade que, sendo vantajosa para um, prejudica o outro?”.

Todavia, tinha certeza: “A verdade geral e abstrata é o mais precioso de todos os bens. Sem ela, o homem é cego; ela é o olho da razão. É por meio dela que o homem aprende a se conduzir, a ser o que deve ser, a fazer o que deve fazer e a dirigir-se para o seu verdadeiro fim.”.

Para chegar à verdade, prefere a ética subjetiva à razão objetiva: “O instinto moral jamais me enganou”. E, na consciência moral, a intenção é tudo: “Uma telha que cai do telhado pode machucar muito, mas não fere tanto quanto uma pedra atirada de propósito por uma mão maldosa. O golpe às vezes erra o alvo, mas a intenção nunca perde o golpe”.

Como não há hipótese de Trump achar a ética um imperativo, a mentira é a pedra que sua mão maldosa atira nos inimigos. E contra pedradas há poucos argumentos: consciência moral, coragem, pontaria.



Fonte ==> Folha SP

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