O novo filme de Petra Costa, “Apocalipse nos Trópicos”, tenta explicar o avanço evangélico na política brasileira. Há cenas fortes de cultos, orações públicas e líderes como Silas Malafaia em discursos inflamados. A imagem impressiona, mas a análise tropeça. A linguagem religiosa aparece, mas seus efeitos no jogo político real não são examinados com método. O roteiro passa do púlpito ao 8 de janeiro como se tudo decorresse diretamente da teologia do domínio. Como apontou Valdinei Ferreira na Folha, o filme ignora que grupos como militares, empresários e ruralistas talvez fossem ainda mais numerosos entre os apoiadores de uma ruptura democrática.
A principal fragilidade está em afirmar mais do que provar. O filme sugere que a teologia do domínio alimentou diretamente a radicalização que levou ao 8 de janeiro, mas não esclarece como essas ideias se conectam a redes de poder ou mobilização concreta. Tampouco delimita quem seriam os operadores reais dessa doutrina. Termos como “evangélicos fundamentalistas” são usados vagamente, deixando a impressão de que a fé, por si, seria a causa de processos complexos que o documentário não investiga.
Essa ausência de método reforça a fantasia de um “evangelistão” em marcha. O dado usado para sustentar essa ideia também é inflado: o filme fala em mais de 30% de evangélicos no Brasil, mas o Censo de 2022 registra 26,9%. Há questões legítimas sobre a participação política de religiosos e sobre como a fé é usada estrategicamente. Mas tratá-las como resultado direto de uma doutrina específica, pouco delimitada e sem evidências sólidas, converte um problema real em caricatura.
O filme aponta para a presença pública da fé, mas ignora a pergunta central: o que exatamente se faz com essa linguagem no espaço político? Não basta apontar crenças; é preciso entender como o discurso religioso é usado para ganhar legitimidade e influência. Essa perspectiva é explorada por Lucas Nascimento no livro “O Veneno da Língua”, da editora Mundo Cristão.
Analisando falas de pastores, sermões viralizados e cultos transmitidos ao vivo, ele apresenta uma tipologia sobre o uso político da fé. Há os enunciadores estratégicos, que adaptam a mensagem ao gosto da plateia; os consequentes, que controlam o discurso por receio das consequências jurídicas; e os virtuosos, para quem falar é responsabilidade ética e cristã.
Essa distinção importa, pois esclarece que o problema não é a presença evangélica em si, mas que tipo de voz domina o debate. Em muitos casos, prevalece um discurso marcado por ressentimento, espetáculo e cálculo eleitoral. Não basta exibir a expansão evangélica ou cenas de culto: é preciso mostrar como elites políticas instrumentalizam a fé para acumular capital simbólico.
Nesse sentido, as entrevistas com Silas Malafaia são reveladoras: ele se orgulha do acesso privilegiado ao Poder. Mas esse fenômeno não é exclusivo dos evangélicos. Aparece também em categorias profissionais, torcidas e movimentos sociais. O que muda é o vocabulário; o que permanece é o uso estratégico de identidades coletivas como moeda política.
Assim, o risco maior não é virar uma teocracia, mas algo mais discreto: o debate político ser substituído por disputas morais. Divergir passa a ser visto como ofensa, e quem fala em nome de Deus se impõe sobre quem apresenta soluções concretas.
Retratar os evangélicos como ameaça à democracia é um erro estratégico, pois fortalece justamente os líderes que deveriam ser contestados. Ao tratar o discurso religioso como uniforme e perigoso por natureza, Petra Costa deixa de diferenciar quem manipula a fé daqueles que apenas a professam. Com isso, acaba reforçando o que pretendia combater.
Fonte ==> Folha SP