“Apocalipse” não quer dizer, ao contrário do que muita gente pensa, destruição ou fim do mundo. “Apocalipse” quer dizer, como algumas pessoas sabem, revelação —e é nesse sentido que o título aparece no último livro da Bíblia: a Revelação de São João. Mas se formos ainda mais fundo ao sentido da palavra, ela quer dizer “descoberta”, pois o prefixo “apó” (απο) em grego é usado no sentido de afastar e “kalypsis” (καλυψισ) designa uma cobertura, telha ou véu.
Um apocalipse, mais do que um fim ou até uma revelação, é um retirar do véu que nos obriga a ver aquilo que de certa forma evitávamos antes.
Por isso, se “Apocalipse nos Trópicos”, o filme de Petra Costa que estreou na semana passada (aviso: tive uma colaboração ínfima no roteiro), pode ser entendido como sendo sobre o fim da democracia, ele na verdade deve ser visto como o retirar do véu sobre algo que temos nos recusado a ver. Esse algo, diria eu, é a capacidade que uma narrativa forte tem para sequestrar a própria ideia de democracia.
Desde sempre parecemos convencidos de que a democracia trata principalmente de melhorar as condições de vida dos cidadãos. Essa convicção é partilhada por ideologias aparentemente antagônicas, do marxismo ao liberalismo, que até a queda do muro de Berlim competiram precisamente no plano de quem conseguiria obter melhores condições de vida para as suas massas.
Essa convicção se prolongou pelos tempos do “fim da história”, a ideia de que os tempos de escassez na história da humanidade poderiam ser vencidos pela tecnocracia e que aquilo que antes era matéria de conflito e discórdia poderia tornar-se simples objeto de administração.
O que essas teses não contaram foi que “a gente não quer só comida”, como dizia a música do Titãs. O que precisávamos da democracia era sobretudo que ela nos preenchesse de sentido.
Quando a democracia fica vazia, repetitiva, rotineira, o espaço que ela deixa de ocupar pode passar a pertencer a uma narrativa. No filme de Petra Costa, como na realidade brasileira das últimas décadas, essa narrativa pode ser religiosa. Mas eu diria que o mais importante não é ser religiosa; é ser narrativa. Os grandes coletivos, como qualquer indivíduo, precisam de saber de onde vêm e para onde vão.
Em outros tempos, as grandes narrativas de progresso da humanidade preenchiam esse vazio, tal como as da construção da nacionalidade também o tinham feito. Houve, porém, uma altura em que a democracia se preocupou apenas com a técnica administrativa, e deixou cada um se virar para preencher o vazio de sentido.
Lá Fora
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Resultado: a ação do governo até pode ter tirado milhares da pobreza e garantido o acesso a educação, moradia e saúde. Quando vem uma narrativa mais forte que diz que não foi o governo que garantiu isso, mas apenas o seu mérito pessoal e Deus, os sucessos do governo se escapam da memória das pessoas como grãos de areia entre os dedos.
Se eu estiver certo nessa leitura, isso quererá dizer também que, para salvar a democracia, não bastará derrotar aqueles que a ameaçam. Será preciso que ela tenha um destino, e um sentido, que volte a entusiasmar as pessoas.
Fonte ==> Folha SP