Se Levitsky e Ziblatt ajudaram a popularizar a ideia de que democracias morrem devagar, em seu livro “Como as Democracias Morrem”, a pesquisa mais recente aprofundou os mecanismos desse processo: repressão seletiva, captura institucional e legitimação permanente. E é cada vez mais claro que o trumpismo não foi um acidente, mas um laboratório global do que vem sendo chamado de erosão democrática ou autocratização progressiva.
Fala-se em deterioração porque se trata de um declínio incremental, sem ruptura formal. Inclui, entre outras ações, retóricas de deslegitimação de elites específicas e da democracia liberal. Autocratização, por sua vez, ocorre quando se combinam três dimensões: repressão seletiva contra adversários, captura de instituições e construção de narrativas que justifiquem medidas autoritárias.
Diferentemente dos colapsos abruptos, essa forma de desmonte ocorre por dentro do sistema, usando métodos legais e a fachada de legitimidade eleitoral. O processo avança quando se combinam três fatores: atores políticos dispostos a alterar regras e instituições, oportunidades de consolidar poder —como apoio eleitoral e controle parlamentar— e uma sequência de etapas que, juntas, minam gradualmente o regime democrático.
Nos Estados Unidos, a democracia parece ter entrado em uma fase crítica de declínio. No primeiro trimestre de 2025, segundo Daniel Stockemer, em seu artigo “Is the US Moving Toward Autocracy?”, Trump já não atua apenas como um populista radical, mas conduz um processo deliberado de autocratização do regime político americano.
Reeleito com uma maioria inédita, consolidou o controle do Congresso e iniciou a neutralização dos principais contrapesos republicanos —em especial os que provêm do Legislativo e do Judiciário. Já no início do novo mandato, promoveu demissões em massa no funcionalismo público, seguidas pela edição de ordens executivas que restringem direitos civis e ameaçam liberdades acadêmicas e de imprensa.
Stockemer detalha que esse processo de corrosão democrática se estrutura em seis etapas. A primeira é a deslegitimação eleitoral, com questionamento sistemático das eleições e recusa de derrotas. A segunda, a captura institucional, envolve a nomeação de aliados políticos em postos-chave do Judiciário e da administração federal, além do uso recorrente de ordens executivas para contornar o Legislativo.
A terceira etapa é o assédio à imprensa e à sociedade civil. A quarta, a judicialização punitiva, marcada por investigações contra opositores e dissidentes internos. A quinta etapa, a militarização retórica e simbólica, mobiliza narrativas de ameaça existencial ao país para justificar vigilância ampliada e restrições de direitos. Por fim, a sexta etapa é a normalização da repressão, quando práticas autoritárias se tornam aceitáveis para amplos setores da sociedade e da elite política, consolidando a erosão dos freios institucionais.
As cinco etapas anteriores já vinham se consolidando de forma cumulativa ao longo do mandato, até que, no primeiro trimestre de 2025, as práticas autoritárias se tornaram aceitas por parte significativa da sociedade e dos republicanos, produzindo um contexto de naturalização do autoritarismo.
Esse estágio mais avançado é identificado pela combinação de três fatores: a retórica de estado de emergência, usada para justificar poderes excepcionais; o uso de investigações e processos contra opositores como instrumento de disciplina política; e o apoio social majoritário entre eleitores republicanos, que passaram a considerar normais medidas de restrição de direitos.
Em outras palavras, Trump já cruzou a fronteira entre o populismo e um processo avançado na direção da autocracia. Stockemer deixa claro que, embora ainda haja espaço para reverter o processo, o ciclo autoritário entrou na fase de institucionalização e normalização, a mais difícil de desfazer.
Exagero ou não, o fato é que o trumpismo nos oferece uma espécie de reality show por meio do qual se pode assistir, episódio após episódio, à consolidação de uma autocracia. Diferentemente de regimes autoritários de esquerda que também desfiguram democracias —como a Venezuela chavista—, a experiência americana lembra que o retrocesso institucional pode vir embalado em bandeiras liberais de mercado e em promessas de regeneração moral.
Não são necessários golpes militares ou revoluções: democracias podem ser desmontadas por dentro, desde que atores dispostos a corroer normas republicanas percebam que podem fazê-lo impunemente.
Fonte ==> Folha SP