Qual seria sua reação se eu lhe dissesse que, em maio, Lula recebeu um salário superior a 1 milhão, em junho 10 milhões, e agora em julho 60 milhões? A “revelação” não decorre da Lei de Acesso à Informação, mas da calculadora de moedas do Banco Central. O salário do presidente, determinado, corrigido e pago em reais, é de 44 mil. Passa a ser de 1 milhão quando convertido em birres etíopes, de 10 milhões em dinares iraquianos e de 60 milhões em guaranis. Só que esses valores só fazem sentido na Etiópia, no Iraque e no Paraguai. Para que faça sentido no mundo todo —e sem exceções—, o salário de Lula precisa ser expresso em dólares.
Qual dessas duas cidades vende o Big Mac pelo preço mais alto? Istambul, onde custa 225 liras, ou Buenos Aires, onde é vendido a 6.700 pesos? O brasileiro pode chegar à resposta convertendo para reais, mas isso não ajuda o angolano. O haitiano pode matar a charada em gourdes, mas o libanês vai ficar no vácuo. Em dólar, todos entendem que o sanduíche é mais caro na capital da Turquia (US$ 5,60) do que na capital argentina (US$ 5,30).
Para algumas comparações, até no Brasil recorremos ao dólar. Ao tomar posse na Presidência, em janeiro de 1995, Fernando Henrique Cardoso ganhava R$ 8.500. Concorda que não faz o menor sentido dizer que o atual presidente ganha cinco vezes mais do que um de seus antecessores? Podemos recorrer ao IPCA, mas em dólar já dá para esclarecer que FHC ganhava mais: US$ 10 mil contra US$ 7.900 do petista.
De tempos em tempos, uma loucura toma conta das discussões econômicas no Brasil. Tipo acreditar no congelamento de preços como arma de combate à inflação, no uso das reservas internacionais para financiar investimentos públicos ou no aumento dos gastos públicos como meio de geração de riqueza. A última, que tem sido sustentada pelo presidente Lula, é a defesa da soberania nacional pela substituição do dólar nas transações internacionais. Acompanhada do convite para os integrantes do Brics negociarem em reais, yuans, rupias e rublos.
Não há lei que obrigue um importador ou exportador a usar o dólar. Só que a maioria usa. Não por subserviência a Washington, mas porque quem vende uma mercadoria de valor quer uma moeda de valor. Uma moeda que passe segurança, tenha liquidez imediata e conversibilidade.
Do total das reservas internacionais do planeta, quase 60% estão em dólar. No caso das reservas brasileiras, 80%. O que vale para os países serve também para as pessoas, que são livres para converter parte da poupança, por exemplo, para bolívares venezuelanos. Mas nem os admiradores do ditador Nicolás Maduro fazem isso.
Moeda é, antes de qualquer coisa, um meio de troca. Se crio boi e quero comprar um apartamento, posso até achar uma construtora aberta ao escambo, mas simplifica vender parte da criação e usar o dinheiro na aquisição do imóvel. Resta escolher a moeda mais adequada para as transações internacionais. Faz sentido mandar uma carga de café para o porto de Alexandria e ser pago em libra egípcia, que desvalorizou 30% no ano passado? E em seguida converter uma parte em euros para pagar a importação de um trator italiano e aplicar a diferença num banco no Cairo? Ou é melhor receber, pagar e aplicar tudo numa moeda só —no caso, uma moeda confiável e estável como o dólar?
Optar por várias moedas é também aceitar a imprevisibilidade e o risco cambial de cada país para o qual exportamos. É ficar à mercê de nações política e economicamente instáveis, de instituições nem sempre confiáveis e governantes dados a estrepolias e manipulações. Em dólar, o risco cai muito, mesmo quando o presidente americano é fora da casinha, como Donald Trump. Euro, libra esterlina, iene e franco suíço também são usadas como referência. Mas nos últimos 80 anos, o dólar é o número 1.
A substituição do dólar nas transações comerciais, como Lula propõe, pode até ser uma bandeira de campanha —mas ninguém que sabe fazer conta enxerga utilidade nesse debate. Soberania nacional e respeito internacional se conquistam com a construção de uma nação confiável, que controla a dívida pública, que respeita as instituições e os contratos e trabalha pela segurança jurídica. Fazendo isso, quem sabe um dia o real se torne uma moeda aceita internacionalmente. Um dólar dos trópicos.
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Fonte ==> Folha SP