A “tragédia dos comuns” é uma teoria que, em resumo, diz que o uso adicional, sem custo, de um bem por vários usuários tende a levá-lo à extinção. Há variações, como a que, em vez de extingui-lo, torna o bem mais caro para todos. Trata-se, no fundo, de cada indivíduo buscar o maior benefício pessoal, sem custo ou a custo baixo, e, assim, produzir o pior resultado coletivo.
Exemplos não faltam. Desde o de pastores levando suas ovelhas para comer até o de pescadores acorrendo a um lago: a grama e os peixes tendem à extinção. Dinamicamente, as ovelhas e os pescadores, sem alimentos, também podem perecer.
Há aplicações da teoria em grandes questões, como a crise ambiental, e cotidianas, como a conta coletiva de água em condomínios. Pode-se usá-la ainda na análise do processo político e econômico, a exemplo das emendas ao Orçamento público.
Com certo sarcasmo, ou metalinguagem, dá para dizer que a teoria se aplica a si própria: não há custo adicional para usá-la e seu uso tem sido excessivo, o que pode levá-la, senão à extinção, ao menos ao descrédito. Antes que isso ocorra, faço aqui minha utilização —e ela mesma tem outra camada de metalinguagem: trata-se do mercado de opiniões.
Com a amplitude e a velocidade das redes, todos podem falar sobre tudo, da forma que quiserem, sem qualquer necessidade de fundamentação ou critério. Não que tal irresponsabilidade seja praticada por todos, mas é possível fazê-lo livremente, juntamente com todos os outros indivíduos, responsáveis ou irresponsáveis, conhecedores ou mentirosos, que atuam no mercado de opiniões. Não há custo.
Chega-se, no raciocínio extremo, ao cenário de extinção da opinião. Parece absurdo. O ponto é que, com a profusão de usos, cuja finalidade é a maximização da fruição pessoal (aparecer, confundir, provocar, ser reconhecido), não é mais possível separar a opinião (errada ou certa com relação a um assunto, mas presumivelmente fundamentada num critério ou ponto de vista ou pesquisa ou engano sincero) do chute descompromissado ou mal-intencionado, com perda coletiva de confiança (e de análise e debate) no que se lê ou ouve. Eu mesmo estou aqui a emitir opinião que suponho responsável, mas que poderá, nesta barafunda, ser desqualificada ou valorada, a depender de quem a leia e confie ou desconfie das minhas intenções e da minha capacitação —e o recomendado é desconfiar mesmo.
Pois é este o cerne. Não se trata de um bem quantitativamente escasso, mas qualitativamente (responsabilidade de quem fala e confiança de quem ouve) sim. E o desaparecimento desses atributos produz a extinção da opinião como tradicionalmente a entendemos.
Não falo do conceito de “verdade”, cujos contornos são bem nítidos —como peixes, gramas, recursos naturais, água encanada etc.— acerca de alguns assuntos, como a Terra não ser plana, ou o Pelé ser o maior jogador da história, ou a vacina ser benéfica. Falo da opinião: o que se acha ou avalia, de forma responsável e sincera, sobre algum tema.
Antes, em âmbito menor, era preciso ter cautela para usar tal recurso —e isso garantia certa audição e algum debate. Hoje, na ausência desse cuidado, descredita-se de tudo. Melhor tomar tudo como chute. E chute, neste mercado é, de fato, o mais comum. O que é uma tragédia.
TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
Fonte ==> Folha SP