No Brasil, nem o império lei nem o poder do Estado conseguiram tornar realidade a igualdade de todos sem distinção de cor. Também não conseguiram promover o bem de todos sem preconceito de raça, conforme estatuam os princípios e objetivos fundamentais lastreados na Constituição cidadã.
Pelo contrário, de forma ambígua e contraditória, nossa República e nossa democracia têm, de um lado, construído uma narrativa e um imaginário permeados pelos valores do pluralismo, da cidadania e da dignidade da pessoa humana, enquanto, de outro lado, singulariza, limita, cerceia e promove a indignidade pela raça e pela cor da pele.
Na segunda maior democracia das Américas, uma das maiores do mundo, e no maior país negro fora da África, onde são a maioria da população, para os cidadãos negros brasileiros, o Estado Democrático tem se constituído num estado de negação de direitos que os mantêm excluídos, separados e desiguais.
Em todos os ambientes e espaços públicos e privados é visível a profunda distorção entre uma República de todos e o privilégio de alguns, que acessam, se beneficiam e se apropriam de forma favorecida do resultado do trabalho e da produção coletiva, aprofundando o fosso das injustiças e das iniquidades.
É na estrutura do Poder Judiciário e do sistema de Justiça que podemos conhecer de maneira esclarecedora o profundo divórcio entre os valores da participação social justa e equitativa que advogamos e a realidade imperativa da força da exclusão racial.
É ínfima e insignificante a presença de negros e negras nas varas e nos tribunais, nas promotorias e procuradorias do Ministério Público, nas defensorias públicas, entre os delegados de Polícia Federal, delegados estaduais, na estrutura de gestão da Ordem dos Advogados do Brasil e nos maiores e destacados escritórios de advocacia do país.
Esse exemplo inconcebível e injustificado de um verdadeiro estado inconstitucional das coisas distorce a realidade e torna impossível a construção da sociedade livre, justa e solidária, que garanta e promova o bem comum, a realização pessoal, profissional, social e espiritual de todos indistintamente. Que garanta a construção de uma justiça plural, diversa e legitimada, porque integrada e enriquecida com as diferentes visões de mundo, pertencimentos e historicidades de todos os brasileiros.
E, se a lei não consegue garantir o exercício do direito, se o Estado não consegue impor e assegurar o cumprimento da lei, como garantir e defender a validade do Estado e como cultuar a sacralidade da lei? Como combater, mudar e transformar um destino manifesto que insiste em manter negros e brancos eternamente apartados? O que podemos e que devemos fazer?
Foi do alto desse desafio, na crença da potência do engajamento cidadão e na convicção de que a ação e o exemplo transformam e arrastam que o Conselho Nacional de Justiça e a Universidade Zumbi dos Palmares, com apoio da Fundação Getulio Vargas, construíram o Programa de Ação Afirmativa, para aumentar a presença de juízes negros na magistratura.
E é com esse espírito de desprendimento e dever civil que demos os primeiros e importantes passos e temos batido à porta de todos os que queiram contribuir com essa grandiosa missão.
Com o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luís Barroso, à frente e com a colaboração de dezenas de empresas e seus presidentes, já são quase R$ 10 milhões alcançados, que permitirão a preparação nos melhores cursos preparatórios do país e um auxílio permanência de R$ 3.000 mensais para a primeira centena de candidatos selecionados.
Queremos e sonhamos com um país justo, no qual juízes e juízas negros e brancos tenham as mesmas oportunidades, convivam de forma harmoniosa, respeitosa e fraterna e ajudem a construir um país que acolha, dê oportunidades e prestigie todos. Onde o Judiciário seja expressão, espelho e reflexo de todos os brasileiros.
Por essa valiosa e corajosa iniciativa, dos negros, o ministro Luís Barroso, os presidentes e suas empresas têm o profundo respeito e gratidão.
Fonte ==> Folha SP