Estou tão acostumado à secura burocrática da maioria dos artigos publicados em periódicos científicos que, quando me deparo com algo diferente disso, é como se levasse um safanão. “Em muitas partes do mundo, a noite não é mais escura”, diz a primeira frase de um estudo recém-publicado, saindo totalmente do script. “Ôpa”, pensei, “esse eu tenho de ler”. Valeu a pena, embora ele deixe no ar mais perguntas do que respostas –como, aliás, a boa ciência quase sempre faz.
Eis o que diz o trabalho: o fim da escuridão noturna em quase um quarto (23%) da superfície terrestre –área hoje afetada pela chamada poluição luminosa– está afetando a maneira como as aves vocalizam. Para ser mais exato, as aves de hoje gorjeiam, em média, 50 minutos a mais por dia do que gorjeavam as do século 19, quando Gonçalves Dias supostamente ouvia sabiás cantando nas palmeiras. A onipresente iluminação artificial está fazendo com que os bichos percam a noção da hora certa para começar a cantar de manhã e parar de cantar no fim da tarde –uma noção outrora determinada apenas pela presença da luz do Sol.
Embora eu tenha me sentido na obrigação cívica de citar os sabiás de “Canção do Exílio” no parágrafo acima, há poucos dados sobre espécies tropicais no novo estudo, assinado por Brent Pease e Neil Gilbert, respectivamente da Universidade do Sul de Illinois e da Universidade do Estado de Oklahoma (EUA).
Mesmo assim, o trabalho, que saiu no periódico especializado Science, contou com uma base de observações bastante respeitável, com quase 600 espécies de 94 famílias de aves diferentes.
Nos ambientes com mais influência da luz artificial, os dados indicam um início das vocalizações cerca de 18 minutos mais cedo do que nos ambientes que mantêm o escuro natural. Quanto ao entardecer, as vocalizações terminam 32 minutos mais tarde quando há muita luz artificial por perto –tudo isso em média, é claro.
O trabalho também investigou alguns dos fatores mais específicos que podem tornar certas aves especialmente vulneráveis à influência da poluição luminosa. Um deles soa ao mesmo tempo óbvio e impressionante: o tamanho dos olhos dos bichos.
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Com efeito, aves com olhos grandes tendem a parar de vocalizar, no fim da tarde, 56 minutos mais tarde do que o normal nas áreas muito iluminadas, enquanto as de olhos pequenos têm um “atraso” de apenas oito minutos. A hipótese dos pesquisadores é que os bichos de olhos avantajados tendem a ser espécies do sub-bosque de florestas (a área de vegetação fechada e mais baixa entre o topo das árvores e o chão da mata), um habitat escuro que as levou a desenvolver uma sensibilidade maior a variações de luminosidade.
Agora vêm as verdadeiras incógnitas: ainda não sabemos o que tudo isso significa. Pode ser que as aves usem o tempo extra de atividade estimulado pela luz artificial para procurar mais comida para si e para os filhotes. Há até casos registrados de aves diurnas que passaram a alimentar a prole à noite por causa da luz artificial, e isso levou a um aumento dos bebês que conseguiram sair do ninho.
Por outro lado, o excesso de tempo acordado pode produzir estresse, baixas na imunidade e infertilidade. Uma coisa, porém, é indiscutível: o tamanho do impacto que a presença humana tem sobre todos os aspectos da biosfera.
Fonte ==> Folha SP