A cronista está decidida a arrancar, mesmo que a marretadas, alguma beleza da vida. Acorda procurando assunto entre os lençóis. Estica o braço até o corpo ao seu lado. Quem sabe possa falar de amor. De conversas matinais ao pé do ouvido. De como ele canta mal no chuveiro. Mas o sujeito em questão mal respira, abatido no solo do colchão por uma caixa de antidepressivos.

Assim como Gonzaguinha, a cronista acredita na beleza da resposta das crianças. Desce para a área comum de seu prédio mas no gira-gira não há ninguém, nos balanços não há ninguém, na gangorra não há ninguém, as polias gritam de ferrugem e tédio mas ninguém se aproxima. Todas as crianças estão amontoadas em um banco, com a tela na frente do rosto, os cotovelos se batendo, um dizendo para o outro: cala a boca que eu tô vendo um vídeo.

Sem encontrar nem a resposta das crianças, a cronista segue em sua busca, avançando pelo jardim do prédio. Pensa quem nem precisa ir muito longe, já que os canteiros de flores estão cheios e não há nada mais inspirador do que a pétala oscilando com o peso da abelha, mas 15 minutos se passam e nem uma mísera jataí ou mamangava se apresenta, lembrando a cronista sobre a recente queda na população de polinizadores, um ótimo assunto para biólogos e ambientalistas, mas não para a sua inexata natureza.

A cronista sai pela rua, quem sabe possa encontrar alguma inspiração na dura poesia concreta de suas esquinas. Passa a fotografar a cidade, a pensar em um texto com fotos e emojis, uma crônica que mimetize a linguagem dos posts. Inovador, absolutamente inovador! A cronista já se imagina ganhando o Jabuti e, perdida em sonhos e interfaces, não percebe a mão que se aproxima e leva seu aparelho, restando a ela somente o verso: se gritar pega ladrão.

Sem tempo para fazer um B.O –é preciso entregar a crônica– a cronista volta para casa com os parágrafos vazios. Terá que arrancar inspiração de si mesma. Na frente do espelho, olha para o seu corpo. Talvez possa escrever sobre a beleza vítrea dos globos oculares, sobre a saliva que desde o seu nascimento não cessa de brotar sob a língua, sobre o charme nada discreto do seu intestino, mas é preciso muita energia para transformar cólon em verso e úmero em prosa, e energia é algo que há muito ela não tem, já que uma parte do seu corpo foi sugada pela menopausa, outra pelo capitalismo.

Infelizmente o cansaço é crônico mas não é crônica. A autora desaba no sofá sem nem desamarrar os verbos, quanto mais os adjetivos. O mar não está para texto. As geleiras derretendo não estão para rima. A sakura fora de época não está para haikai. O sertão em chamas não está para cordel. O Estado de Direito não está para estribilho. O mundo não está para dodecassílabo.

Se não dá para encontrar beleza no mundo, que seja fealdade. Pronto, ela vai se colocar no lugar os oprimidos, na pele dos exilados, dos refugiados, dos encarcerados, dos cidadãos que levam bala de borracha ou de artilharia, mas logo ouve a voz: esse não é seu lugar, desça já desse teclado, e assim a cronista recua, imaginando antes o cancelamento do que a crônica, antes a crítica do que a obra, e assim cruza esta última linha resfolegando no seu preenchido vazio.