A conversa entre médicos sobre assuntos da profissão se manifesta por uma língua pouco amistosa para leigos. A mesma coisa ocorre entre professores de português ou gramáticos versando sobre tópicos de linguagem. E se misturássemos as duas áreas de atuação: a medicina e as letras?
Poderíamos imaginar, mais ou menos, uma cena como esta: após uma gravíssima colisão entre duas onomatopeias, um texto entra em coma. Um gramático-cirurgião analisa o sujeito paciente quando chega, às pressas, o estagiário residente trazendo a papelada:
“Doutor, qual é o quadro?”
“Bem… Aqui quase houve um infarto da mesóclise. Mais adiante, vemos um tumor no núcleo do sujeito já em estado de metáfora.”
“Mas isso não é grave, doutor.”
“Para este texto, sim. Provavelmente não seguiu as orientações linguísticas que lhe proibiam o consumo excessivo de figuras de linguagem. O caso pede uma operação semântica para lhe restituir a denotação.”
“E este outro tumor aqui, doutor?”
“Ah, este não é maligno. É apenas proveniente de um acúmulo de lipídios ocasionado pela repetição do pronome proclítico ao verbo.”
“Perdão, doutor, mas vejo como sintoma recorrente a repetição de verbos no gerúndio em estranha aglomeração frasal, como aqui, olha: ‘Vamos estar providenciando’.”
“Bravo, rapaz! Trata-se de um típico caso de gerundismo, uma epidemia que assola a língua portuguesa.”
“E tem cura?”
“Infelizmente, é quase incurável. Muitos textos têm que conviver com essa doença. Alguns não a conseguem tolerar e morrem.”
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“Doutor, os exames mostram que o texto estava alcoolizado!”
“Um texto alcoólatra! Isso agrava a situação. Vamos proceder à intervenção gramatical imediatamente!”
“Espere, doutor, aqui diz, também, que este texto não tem plano de revisão gramatical.”
“Não! Hum… Sendo assim…”
“Deixemos para mais tarde, doutor?”
“Certamente. Agora vamos examinar aquele paciente com crises de pleonasmo.”
Márcio Chocorosqui é jornalista e escreve de Rio Branco (AC).
O blog Praça do Leitor é espaço colaborativo em que leitores do jornal podem publicar suas próprias produções. Para submeter materiais, envie uma mensagem para leitor@grupofolha.com.br
Fonte ==> Folha SP