Em algum dia de 2022, entrei num templo yazidi na Armênia, um belíssimo templo cor âmbar, com seu grande pavão ao centro do altar. Radicalmente vazio, suportando uma imensa luz, como que cantando o canto do pavão, representante da sua divindade monstruosa, conhecida como o anjo mau.
O Estado Islâmico, grupo assassino islamita, matou yazidis aos montes, escravizou suas mulheres como prostitutas não pagas, aos olhos de um mundo indiferente ao massacre yazidi. A “justificativa” do “califado” era que os yazidis são adoradores do Satanás.
A cosmologia yazidi é parente próxima de heresias cristãs desde a Antiguidade, como gnosticismo, maniqueísmo, e, já adentro da Idade Média europeia, os bogomilos e cátaros. Os yazidis também são considerados uma heresia dentro do islamismo.
Todas essas formas de espiritualidades sombrias carregam consigo a hipótese, para alguns, herdeira do zoroastrismo persa antigo, segundo a qual há uma força, ou divindade, que age sobre o mundo fazendo dele um local de sofrimento, agonia e desespero.
Quando vemos a agonia dos seres humanos, dos cachorrinhos e seres vivos como um todo diante do envelhecimento e da morte, é impossível as almas mais desesperadas não sentirem o halo do anjo mau yazidi sobre o horizonte.
Quando vemos as vítimas massacradas em Israel, Gaza, Ucrânia, Irã e na sempre esquecida África, é impossível as almas mais atentas não buscarem os rastros do anjo mau yazidi.
De onde poderia vir esse choro espalhado pelo mundo, eterno, contínuo, ensurdecedor, senão dos olhos cheios de sangue desse anjo mau?
Qual a resposta possível, razoável, à hipótese yazidi? O filósofo alemão Leibniz (1646-1712) perdia o sono buscando uma resposta racional à hipótese gnóstica e seu demiurgo cruel criador do mundo —parente próximo do anjo mau yazidi, representado pela figura do pavão majestoso em seus templos.
Se essas cosmologias negativas tiverem razão, o que fazer? Leibniz acabou por cunhar o importante conceito de teodiceia para responder aos gnósticos. Há que responder a este desafio de forma racional, ou seja, encontrar um caminho que justifique o mundo tal como ele é, sem apelo à revelação sagrada. Daí a sua hipótese do “melhor mundo possível”.
Nosso mundo é o melhor mundo possível. Uma vez que só Deus é perfeito, nada pode sê-lo sem ser essa coisa mesma Deus. Deus entrega esse mundo a nós, e cabe a nós fazer o melhor que os imperfeitos podem fazer numa matéria sem si imperfeita.
São inúmeras as controvérsias acerca dessa hipótese. Voltaire (1694-1778) mesmo escreveu seu “Cândido” para criticar Leibniz e tirar sarro da sua proposta ingênua diante de um mundo de trevas dominado por superstições, ignorância e religiões idiotas —para Voltaire, uma redundância.
Para Cândido, o protagonista, a única solução ao final seria “cuidar do nosso jardim”, ou seja, o mundo lá fora está além das nossas possibilidades de redenção. O nome em francês, “Candide”, carrega a mesma ambiguidade do termo em português, nome próprio e adjetivo similar a ingênuo ou dócil.
Para o “mainstream” teológico das três religiões monoteístas abraâmicas —judaísmo, cristianismo e islamismo—, a hipótese negativa dos yazidis e seus próximos no cristianismo é absurda. O criador é bom e justo, e sua criação, portanto, é bela e boa —parece Platão. Somos chamados à ação sobre o mundo e no mundo. Somos chamados a cuidar da criação, uma vez que, como diz Deus a Adão, somos os guardiões da criação divina.
Apesar do caráter sedutor e elegante da hipótese negativa acerca da criação —para a razão, parece mais razoável, dado o estado do mundo, que ele tenha sido criado, ou seja administrado, por um princípio mau—, se fosse dado a mim escolher entre a hipótese negativa dessas heresias e a hipótese “otimista” da teologia “mainstream”, escolheria esta. Teologicamente e existencialmente, parece-me terrível a possibilidade de Deus ser mau ou ter entregado sua criação ao cruel anjo mau.
Por exemplo, parece-me também muito elegante a hipótese da filósofa portuguesa Cristina Sá Carvalho, professora da Universidade Católica Portuguesa em Lisboa, inspirada nas ideias do papa Francisco, morto recentemente, de que devamos fazer uma “viagem até a misericórdia” a fim de cuidar do mundo e das coisas.
Seu livro “A Misericórdia como Categoria Política”, da UCP Editora, é um belo trabalho de argumentação a favor da ideia de que, sem a misericórdia, não há como sustentar o mundo e as coisas dentro dele. Entretanto, a misericórdia, como tudo mais que importa, está sempre nos detalhes.
Fonte ==> Folha SP