Musk saiu detonando. Qualificou o “Big Beautiful Bill”, projeto orçamentário de Trump, como uma “abominação repugnante”: “vergonha daqueles que votaram por ele”. É a primeira cisão relevante no governo Trump —e a evidência de que, no lugar de sentenças condenatórias sobre o “fascismo”, deve-se entender a complexidade.
No primeiro mandato, um Trump inseguro cercou-se de figuras do establishment e apoiou-se na burocracia profissional. O resultado foi o cerceamento de seus impulsos mais destrutivos. No mandato atual, o presidente libertou-se dos grilhões. Convocou arautos extremistas, sicofantas e bajuladores, declarou guerra à burocracia estatal e desafiou a autoridade dos juízes. Mesmo assim, seu governo não é um monolito, mas um arco-íris ideológico.
A coalizão engloba três facções da direita: nacional-populistas, tecno-libertários e republicanos tradicionais. A terceira vertente foi inserida no governo com o intuito de completar a demolição do antigo “Partido de Reagan”, pela via de sua desmoralização. Mike Waltz, o breve conselheiro de Segurança Nacional que tentou conservar a espinha ereta, foi exilado ao posto cerimonial de embaixador na ONU. Já Marco Rubio, o intimidado secretário de Estado, sacrifica diariamente suas convicções no altar da adulação de Trump.
Rubio curvou-se à traição da Ucrânia, engajou-se na aniquilação da Usaid e assumiu papel instrumental na anulação de vistos de ativistas que, à sombra da Primeira Emenda, manifestam-se contra Israel. De joelhos diante do presidente, personifica a morte cerebral do internacionalismo conservador nos EUA.
A demissão de Musk altera o equilíbrio de forças entre as duas facções principais do governo, assinalando o triunfo dos nacional-populistas.
Os tecno-libertários são globalistas e ultraliberais. No passado, penderam para o lado dos democratas, subordinando a meta de um “Estado mínimo” à de uma economia mundial aberta. Deram meia-volta na campanha de 2024, atraídos pelas promessas de desregulamentação radical e de uma guerra total contra a burocracia profissional. Além de Musk e Vivek Ramaswamy, os demissionários líderes do Doge, Trump recebeu apoios milionários de Peter Thiel, do PayPal, Tim Cook, da Apple, Mark Zuckerberg, da Meta, e até do ex-inimigo Jeff Bezos, da Amazon.
Os tecno-libertários sujeitaram-se à deflagração da guerra fiscal, mas não engoliram o “Big Beautiful Bill”, que acelera o endividamento nacional dos EUA. A cisão de Musk, um ultraliberal cujas maiores empresas orbitam ao redor de contratos com o Estado, escancara as insanáveis contradições da coalizão montada por Trump.
Os nacional-populistas, representados pelo vice J.D. Vance, pelo ideólogo Steve Bannon e por Pete Navarro, arquiteto da guerra tarifária, formam o eixo do governo e fornecem as bandeiras do movimento Maga. Na esfera geopolítica, são isolacionistas, restaurando o compasso estratégico que predominou no entreguerras. No campo dos valores, resgatam os conceitos reacionários de Pat Buchanan, antigo líder da ala cristã republicana. Sobretudo, porém, são populistas econômicos dispostos a conduzir as aventuras do protecionismo tarifário e de um expansionismo fiscal sem freios.
Trump, o árbitro final, carece de princípios ou ideologia. Mas é com os nacional-populistas que escolheu governar.
Fonte ==> Folha SP