Já estou no futuro. Gravei por um dia todas as minhas conversas, profissionais e pessoais, com um aparelho que usa inteligência artificial. Para quem não conhece, ele se chama Plaud e vem em dois formatos. Um do tamanho de um cartão de crédito que é colocado atrás do celular. A outra apresentação é um broche, que pode ser carregado no bolso (se você curte o brega, pode carregá-lo em um colar, pendurado no pescoço).
O efeito é o mesmo. O Plaud grava todas as suas conversas e transcreve tudo automaticamente em texto com inteligência artificial. Não só: ele resume o que foi dito, permite buscar por cada palavra e monta até um mapa mental do que foi dito. Para fazer tudo isso, ele usa a tecnologia do ChatGPT.
Como sua bateria dura 26 horas (e leva duas horas para carregar) eu poderia deixar o aparelho ligado gravando tudo que falo, todos os dias. Isso criaria um arquivo da minha vida. Nesse pacote estariam conferências e palestras, o conteúdo da TV e do streaming a que assisto, as conversas profissionais com meus colegas, diálogos com familiares e amigos, eu conversando com meu cachorro Fubá, falando sozinho, ou cantando no chuveiro.
É claro que não vou fazer isso. Mas muita gente fará. Esse é provavelmente o futuro de boa parte da humanidade. Há algumas semanas a Open AI comprou por US$ 6,5 bilhões (R$ 35,7 bilhões) a empresa de Jony Ive, um dos principais designers da Apple. A ideia é criar um aparelho sem tela para competir com os smartphones (e ser usado por bilhões de pessoas).
O aparelho não existe ainda, mas provavelmente vai captar tudo você faz e todas as suas conversas. Usando IA, vai organizar sua vida automaticamente. Marcar reuniões, emitir passagens aéreas, reservar restaurantes, corte de cabelo, pagar contas e assim por diante. De quebra, esses dados serão usados para treinar a própria IA.
Folha Mercado
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As implicações de tudo isso são profundas. Primeiramente, adeus privacidade. Será preciso fazer um esforço enorme para ter certeza de que uma conversa é privada. O segundo ponto é propriedade intelectual. Posso sair por aí gravando conteúdos protegidos por direito autoral, incluindo músicas, filmes e muito mais.
Mas o ponto central é a vigilância. Se todas as nossas interações serão potencialmente gravadas, transcritas e processadas, isso pode jogar por terra fundamentos universais da existência humana, como memória, espontaneidade, livre arbítrio, liberdade de expressão e salvaguardas contra manipulação psicológica. Governos poderão pedir, por exemplo, para analisar todas as suas conversas antes de autorizar um visto de entrada.
Haverá também problemas legais inéditos. Hoje no Brasil é permitido gravar conversas sem a outra pessoa saber e até mesmo usá-las como prova, o que foi confirmado por decisão do Supremo. É possível imaginar uma hipertrofia do direito e de outras formas de controle social invadindo as esferas privadas e tornando o medo e a dúvida o novo normal. Grave essas minhas palavras.
Já era – viver a vida com privacidade e autonomia
Já é – aparelhos conectados à IA gravando cada vez mais a vida cotidiana
Já vem – vida mediada pela IA se distinção de público e privado
Fonte ==> Folha SP