Não foram as redes sociais que criaram o fenômeno mais antigo da humanidade: crianças imitando adultos. Muito antes da era do rádio ou da TV em preto e branco, isso já fazia parte da vida. Crianças imitam pais, irmãos, professores e, claro, celebridades. Vai dizer que você, quando criança, nunca se imaginou fazendo um show, marcando um gol na final de um grande campeonato ou estrelando um filme no cinema? Não vale mentir.
Já vimos inúmeros cantores, atores, jogadores e dançarinos mirins na mídia. No entanto, só com os pregadores mirins surgiu tamanha “preocupação” com a infância. Crianças imitando de Anitta a Roberto Carlos: tudo bem. Mas imitando pastores evangélicos? Aí não! Se forem neopentecostais, então, o cancelamento e os memes disparam.
O incômodo, ao que tudo indica, não está na idade da criança, mas no universo simbólico que ela representa.
O incômodo com pregadores mirins vai além da imitação —involuntária ou não— e se deve ao simbolismo de autoridade espiritual que representam. O missionário Miguel Oliveira, por exemplo, foi tratado como pastor, orou por fiéis e rasgou um diagnóstico médico em nome da fé. É problemático, óbvio. Mas a pergunta é: a responsabilidade é realmente dele?
O reconhecimento de líderes espirituais na infância não é exclusivo dos evangélicos —o Dalai Lama, por exemplo, é escolhido ainda criança no budismo tibetano, e há médiuns mirins em tradições afro-brasileiras. A questão, portanto, não é a idade, mas quem exerce essa autoridade e de onde ela vem. Miguel, por ser uma criança evangélica e de origem simples, enfrenta o desprezo de uma elite que valoriza apenas certos campos religiosos e culturais.
Ele não é o primeiro. Vitória Souza, por exemplo, foi apelidada de “a pregadora do iPhone”. A crítica a ela foi mais dura que a dirigida a outras crianças expostas em letras sexualizadas ou romances infantis na mídia. Mas pregação? Inadmissível!
Com Miguel, bastou um “Off the King the power…” para que sua imaturidade natural da idade fosse ignorada. Jornalistas o trataram como ameaça. O caso chegou a ponto de o Conselho Tutelar proibi-lo de pregar ou publicar vídeos.
A reação a casos como o de MC Melody expõe um escândalo mais ligado à rejeição da estética da periferia do que à real proteção da infância, enquanto outras exposições infantis são toleradas. No caso de Miguel, a indignação parece motivada menos por cuidado com crianças e mais pelo incômodo com a mensagem evangélica.
Não critico o Conselho Tutelar, mas a disparidade. Se o critério é proteger crianças, ele deve valer para todas —não só para as que pregam.
Embora seja claro que crianças devem priorizar a escola e que a fé não deve ser explorada comercialmente, especialmente com menores, o caso de Miguel escancara que o verdadeiro incômodo das críticas estava mais na presença evangélica do que na proteção à infância.
Parte significativa da intelectualidade trata a fé evangélica com desprezo ou desconfiança, pregando tolerância mas agindo com intolerância; ridicularizam a religiosidade infantil e ignoram a complexidade da fé fora do secularismo.
O crescimento evangélico tem infelizmente ampliado o distanciamento com setores progressistas, não por culpa dos fiéis, mas por um olhar que reduz a fé a fanatismo. Muitos já se cansaram de ver sua crença associada apenas a comércio ou manipulação. O caso de Miguel evidencia essa seletividade.
Enquanto tratarmos com naturalidade a exposição infantil em certos contextos e com escândalo em outros, o problema não será a infância, mas a hipocrisia. A crítica, disfarçada de cuidado, revela um preconceito contra uma expressão religiosa que só cresce no país. Miguel virou pretexto para atingir o que realmente incomoda: a presença evangélica crescente na cultura.
Nesse cenário, o debate sobre infância, fé e espaço público precisa de mais coerência, menos ranço e, sobretudo, mais honestidade intelectual.
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Fonte ==> Folha SP