Ela é vendedora de roupas numa pequena loja no Brás e seu salário depende diretamente do volume de vendas. Ele é banqueiro de investimentos no Itaim, e sua compensação também tem estrutura predominantemente variável, atrelada à originação e fechamento de operações financeiras. Ambos estudam à noite. Nas universidades, observa-se uma tendência crescente de substituição da pesquisa fundamental por projetos com aplicação imediata e alinhamento a indicadores de desempenho.
Vivemos cercados por métricas. PIB, produtividade marginal, custo de oportunidade. Ao longo dos séculos, construímos modelos que racionalizam escolhas e identificamos incentivos que moldam comportamentos. Em 1693, John Locke chegou a defender que os pais deveriam “oprimir e conter” a disposição poética dos filhos “o máximo possível” para que os herdeiros não colocassem em risco o patrimônio da família. A teoria econômica dominante atribui menor relevância a ativos cujo valor não é transacionável ou não se reflete diretamente nos mecanismos de preço.
Mas a economia, como ciência social, precisa de recuperar sua vocação de compreender as dinâmicas humanas em sua totalidade, inclusive as que escapam à lógica do cálculo. À medida que o mundo se vai mecanizando e a inteligência artificializando, abrir-se-ão novos espaços de produção de valor não quantificável, onde as motivações humanas, simbólicas e relacionais desafiarão os modelos tradicionais de otimização.
Cada vez mais me interesso por aquilo que se forma nas margens do sistema econômico, nos espaços de transição, nas zonas que escapam à lógica central da produtividade. Refiro-me às formas alternativas de produção de valor que não se deixam capturar por uma lógica de rentabilidade. É a economia dos inúteis. Uma economia baseada na criatividade, no pensamento crítico, no erro, na lentidão reflexiva, nos vínculos sociais, no afeto e na sensação de pertencimento.
Isto não é necessariamente novo. Há muito tempo se estuda a importância de sentimentos morais e éticos para a economia (Adam Smith), a utilidade do que é considerado inútil (Nuccio Ordine), as atividades econômicas invisibilizadas (Mariana Mazzucato), as decisões tomadas nas margens do sistema (Esther Duflo e Abhijit Banerjee) e a economia informal (Keith Hart), além das relações entre felicidade e economia (Richard Layard).
De modo geral, essas análises se colocam como críticas ao modelo econômico tradicional. Têm uma dimensão antissistema, de resistência, de oposição.
Mas o que antes era tratado como marginal pode, aos poucos, tornar-se central no pensamento econômico. À medida que a inteligência artificial automatiza parcelas crescentes do trabalho produtivo tradicional, reduz-se progressivamente a participação humana na geração direta de valor econômico.
Nesse novo arranjo, adquirem relevância e dimensões até então consideradas periféricas ou intangíveis. Atividades ligadas a vínculos interpessoais, mediação emocional, criação simbólica, gestão do tempo livre e bem-estar subjetivo passam a configurar vetores significativos de valor econômico, ainda que não plenamente capturados por métricas convencionais de produtividade.
Folha Mercado
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Uma parcela crescente da população será retirada do circuito produtivo tradicional, tornando-se economicamente excedentária. A economia dos inúteis não é ócio improdutivo, mas uma resposta concreta à nova condição humana num mundo de trabalho algorítmico. Como construir uma sociedade em que o valor não esteja mais atrelado à função produtiva?
Assim, talvez a maior revolução econômica deste século não emane da disrupção tecnológica, mas da reabilitação do supérfluo. A economia dos inúteis, longe de ser um apêndice do sistema industrial ou um modelo antissistema, será o que permitirá que os humanos continuem sendo humanos.
Fonte ==> Folha SP