O governo e a Câmara não estão se entendendo nas discussões da segunda parte da reforma tributária, que altera o Imposto de Renda. Os principais pontos de divergência são sobre a taxação de contribuintes mais ricos e a situação de estados e municípios, que temem perder receita.
Quatro reuniões da Comissão Especial sobre Alteração da Legislação do Imposto de Renda, criada no início de maio, já foram realizadas. A última delas foi na terça-feira passada (17) e um dos poucos consensos existentes entre a equipe econômica e o relator, o ex-presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL), é em relação ao aumento do limite de isenção: R$ 5 mil.
A proposta do governo – o projeto de lei 1.087/2025 – foi apresentada em 18 de março. O objetivo é o de reduzir a carga tributária para quem ganha menos e aumentar o os impostos de quem ganha mais. O Executivo diz que, com isso, busca justiça fiscal.
O caminho até a aprovação no Congresso Nacional está se mostrando um palco de intensas negociações, com o relator do projeto e representantes do governo – como o secretário de Reformas Econômicas, Marcos Barbosa Pinto, e o secretário especial da Receita Federal, Robinson Barreirinhas – divergindo em pontos cruciais.
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O panorama é desafiador, avaliam os analistas políticos Erich Decat e Izael Pereira, da corretora Warren Rena. Segundo eles, a proposta do governo apresenta obstáculos significativos:
- a metodologia da tributação;
- o impacto fiscal nos entes subnacionais;
- a complexidade operacional; e
- a forma como a regulamentação será detalhada.
As divergências apontam para prováveis alterações no texto da reforma. A tributação de dividendos é um dos pontos mais sensíveis e com maior potencial de modificação, avaliam os especialistas da Warren Rena.
Outro ponto de preocupação é sobre os efeitos das mudanças para os estados e municípios. O projeto de lei do governo é encarado por muitas unidades da federação como “uma bondade com chapéu alheio” já que mexe na receita delas.
A Constituição determina que todo o Imposto de Renda que é retido na fonte de servidores estaduais e municipais pertence aos respectivos estados e municípios. Com a ampliação da faixa isenta, os governos regionais perderão imediatamente boa parte dessa receita.
Além disso, quase metade da arrecadação global do IR é repassada para estados e municípios – e, caso a renúncia fiscal não seja devidamente compensada, essa fatia do “bolo” corre o risco de diminuir. A arrecadação do IR é compartilhada com estados e municípios por meio de fundos regionais:
- 21,5% dos recursos vão para o Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal (FPE);
- 25,5% para o Fundo de Participação dos Municípios (FPM); e
- 3% para programas de financiamento nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
Isenção de R$ 5 mil é consenso em meio aos impasses
Em meio às discussões, um ponto se firma como consenso irrestrito entre o governo e o Congresso: a isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil por mês. Lira é enfático ao dizer que essa é “a única convergência de todo o Congresso”. “Ninguém contesta a isenção de R$ 5 mil”, diz.
O projeto também prevê a aplicação de descontos para rendas entre R$ 5 mil e R$ 7 mil, uma “escadinha” desenhada para evitar que o contribuinte tenha um rendimento líquido menor ao ultrapassar o limite de isenção.
Barbosa Pinto, secretário de Reformas Econômicas da Fazenda, ressaltou em suas falas na comissão a importância dessa correção, que segundo ele reverte um “aumento sigiloso da tributação sobre a renda das pessoas físicas” que perdurou por quase 30 anos devido à falta de correção dos valores da tabela.
As perdas, entretanto, não serão totalmente compensadas. A Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco) apontou, em março, que o limite mínimo de isenção estaria em R$ 5.211, 51 se a tabela do IR tivesse sido corrigida integralmente pelo IPCA nos últimos 29 anos. Além disso, quem ganha acima de R$ 7 mil continuará sendo tributado pela antiga – e defasada – tabela.
Outro ponto de convergência entre o governo e o relator da proposta é a necessidade de clareza e detalhamento legal. Tanto Barbosa Pinto quanto Lira concordam que os mecanismos de devolução do imposto excedente devem ser explicitados na própria lei, e não relegados à regulamentação infralegal, para garantir segurança jurídica ao contribuinte.
Os pontos de ruptura: onde Lira e o governo não se entendem
Apesar dos consensos, as audiências públicas da Comissão Especial da Reforma da Renda revelam grandes divergências, que estão traçando a linha do debate no Congresso. Os principais pontos de ruptura são:
- a forma de compensação das perdas de arrecadação devido à correção na faixa de isenção do IR; e
- a situação de estados e municípios diante das mudanças no IR.
Como compensar a perda de arrecadação?
A principal preocupação de Arthur Lira reside na forma de compensação da perda de arrecadação decorrente do aumento na faixa de isenção do IR para quem ganha até R$ 5 mil por mês, que poderá beneficiar 14 milhões de contribuintes. Segundo ele, há muito ceticismo no Congresso em relação aos argumentos apresentados pelo governo.
A Receita Federal projeta uma renúncia de receitas de R$ 25,84 bilhões em 2026, mas avalia que, com as novas medidas, haverá uma compensação integral. “O projeto é perfeitamente equilibrado do ponto de vista fiscal”, diz Barbosa Pinto.
O governo insiste na neutralidade fiscal do projeto, afirmando que a isenção e os benefícios para rendas mais baixas serão integralmente financiados pela tributação de altas rendas, incluindo lucros e dividendos.
O calcanhar de Aquiles da proposta apresentada pelo governo é como ficam estados e munícipios diante das mudanças na tributação. Arthur Lira é categórico nesse ponto, afirmando que essa é uma questão fundamental para ser resolvida e essencial para o projeto ser levado à votação.
O relator busca ativamente alternativas para mitigar esse impacto. Os prefeitos, representados por Paulo Ziulkoski, presidente da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), e Michele Roncalio, presidente da Associação Brasileira das Secretarias de Finanças das Capitais (Abrasf), já levantaram a voz, apontando perdas significativas no Imposto de Renda retido na fonte por suas folhas de pagamento e no Fundo de Participação dos Municípios (FPM).
As estimativas de perdas para os municípios variam drasticamente: de R$ 4,85 bilhões, segundo a Abrasf, a R$ 20 bilhões anuais, dependendo da fonte e da abrangência da análise.
Robinson Barreirinhas, da Receita Federal, apresenta uma contra-argumentação complexa. Ele admite uma redução na retenção na fonte para municípios. Mas, defende que o efeito global será compensado por um aumento robusto nas transferências para o Fundo de Participação dos Estados (FPE) e o FPM, impulsionado por outras medidas de arrecadação, como a tributação de offshores e fundos fechados.
O secretário chega a afirmar que, entre 2015 e 2022, estados e municípios “ganharam dinheiro” pela inação da União em corrigir a tabela do IR, justificando a metodologia da Receita. O órgão projeta um impacto menor, entre R$ 2 bilhões e R$ 3 bilhões, bem abaixo dos números apresentados pelos municípios. Lira, no entanto, sinaliza uma possível subestimação desse impacto.
Como fica o aumento para os mais ricos?
A proposta do governo também introduz o Imposto de Renda da Pessoa Física Mínimo (IRPFM). A ideia é aplicar uma alíquota de até 10% sobre a renda anual que exceda R$ 600 mil. O teto seria aplicado para quem ganha acima de R$ 1,2 milhão.
Lira questiona a opção pelo IRPFM em vez da tributação direta de lucros e dividendos. Ele citou o PL 2.337/2021, uma proposta de reforma do Imposto de Renda apresentada pelo governo de Jair Bolsonaro (PL). Para Lira, o projeto – que foi aprovado pela Câmara, mas não chegou a ser discutido no Senado – era “mais neutro” que o do governo Lula.
O relator também está preocupado com a eficácia do redutor do IRPFM, que, segundo ele, diminuiria a arrecadação em R$ 3,6 bilhões. Lira prefere um modelo progressivo mais tradicional, onde a tributação incidiria apenas sobre o excedente da renda, não sobre a base total.
O citado redutor é um mecanismo pelo qual o governo pretende somar a tributação efetiva sobre a empresa com a taxação do dividendo distribuído ao acionista. Caso o total supere determinado patamar, a pessoa física terá direito a uma devolução.
Segundo a proposta, essa soma não será superior a 34% para empresas não financeiras, 40% para companhias de seguros e capitalização e 45% para instituições financeiras. Caso a soma ultrapasse esses porcentuais, a Fazenda diz que o contribuinte receberá uma restituição em sua declaração anual de pessoa física.
Barbosa Pinto diz que o projeto “não é sobre tributar todos os dividendos”, mas sim a alta renda, na prática, acima de R$ 1 milhão por ano. Segundo ele, cerca de 80% das pessoas que recebem dividendos continuariam isentas. Ele defende que a tributação de dividendos pode estimular o reinvestimento nas empresas.
Barreirinhas, por sua vez, argumenta que o IRPFM é mais eficiente por focar na renda total da pessoa física, o que dificulta manobras de contribuintes para desviar a fonte de renda e escapar da tributação. A Receita vê o redutor como uma “salvaguarda de justiça fiscal”, essencial para evitar a dupla tributação para sócios de empresas que já pagam altos impostos na pessoa jurídica.
Mesmo em outros órgãos ligados ao governo existem divergências em relação à proposta que está em discussão na Câmara. Especialistas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), um braço do Ministério do Planejamento, consideram o PL 1.087 “tímido” e defendem que a tributação de lucros e dividendos é uma prática comum e eficiente na maioria dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e da América Latina, o que contrasta com a isenção brasileira.
Complexidade da proposta e desconfiança sobre dados da Receita
Outro ponto de desconforto de Lira em relação à proposta que está em tramitação na Câmara é em relação à complexidade operacional, especialmente no que se refere e à devolução de tributos excedentes e ao impacto fiscal geral.
Barbosa Pinto reconhece a situação, mas a justifica como uma necessidade para garantir a justiça fiscal e sugere que a Receita Federal pode simplificar o processo por meio da declaração pré-preenchida.
A confiança nos dados técnicos é um ponto sensível. Lira expressa ceticismo em relação aos dados do Ministério da Fazenda, alegando que ainda não recebeu respostas oficiais para suas análises.
Marcos Pinto reconheceu o atraso, dizendo que ele se deve em parte à greve da Receita, e prometeu o envio dos dados detalhados. Barreirinhas reforçou o compromisso da Receita em fornecer informações técnicas, estudos e projeções.
Fonte ==> UOL