Quando o Brasil fala de tráfico, quase sempre fala de arma, caveirão e guerra. Quase nunca de gente.
“Humanos”, livro lançado nesta sexta-feira, nasceu exatamente desse buraco: a ausência de escuta, de contexto e de coragem para olhar o tráfico como espelho do país, e não apenas como espetáculo policial.
Pai e filho, Celso Athayde e Marcus Vinícius Athayde, escrevem sobre a mesma ferida, a partir de lugares diferentes da história, mas parecidos na pele e no CEP.
Eu, Celso, 62 anos, cresci na favela do Sapo, no Rio de Janeiro, andei pela linha fina entre o crime e a sobrevivência. Filmei “Falcão – Meninos do Tráfico”, quando o Brasil ainda fingia que não sabia o que acontecia nos becos.
Eu, Marcus, 25 anos, economista, carrego no rosto o mesmo perfil que hoje aparece nas estatísticas do crime. A diferença entre mim e muitos dos que entrevistamos nunca foi caráter. Foi a chance ou a falta dela.
Milhões de humanos nunca terão uma única chance, pois o berço da oportunidade não chega para todos.
“Humanos” nasce de uma pesquisa inédita do Instituto Data Favela, “Raio-X da Vida Real”, em que ouvimos, cara a cara, quase 4.000 pessoas envolvidas com o crime, em 23 estados.
Entramos nos territórios com o nosso time não para justificar nada nem para limpar a imagem de ninguém, mas para fazer o que o país quase nunca faz: perguntar e ouvir. Não só sobre crime, mas sobre infância, família, medo, fé, amor e futuro.
Os números arrancam o conforto de quem acredita em “casos isolados”. Metade dos entrevistados tem até 26 anos; 80% têm até 36. A cor predominante é preta. A maioria tem família: companheiro ou companheira, filhos, alguém por quem responde em casa.
Quase metade responde que o principal motivo da entrada no crime é falta de dinheiro. Quando perguntaram o que faria diferente, a resposta mais comum é ter estudado.
A maioria também afirma que não sente orgulho do que faz. E 84% dizem que nunca deixariam seus filhos seguirem o mesmo caminho.
Outro dado que desmonta o senso comum é a renda: 60% dos entrevistados ganham menos de dois salários mínimos, o que desmistifica a ideia de que o crime gera riqueza para quem está na base dessa cadeia.
Não acreditamos em vocação para o mal. Acreditamos em portas fechadas. Muitos desses jovens dormem com fome antes de dormirem com uma arma debaixo do travesseiro.
O tráfico aparece como o “segundo turno” da pobreza: gente que trabalha formalmente ou faz bico de segunda a sexta e, no fim de semana, entra no sabadão, aquele turno extra no crime para completar a renda no final de semana.
O Brasil produz trabalhadores sem direitos; o crime recicla esses mesmos trabalhadores sem futuro.
Ao longo das páginas, o rótulo “criminoso” vai cedendo lugar a gente com nome, mãe, fé, medo e sonhos. Sonho de casa própria, de geladeira cheia, de filho longe da vida louca. Não há romantização nisso. Há contradição.
É possível reconhecer humanidade sem renunciar à responsabilidade. O que não é possível é continuar discutindo segurança pública como se estivéssemos falando de monstros abstratos, e não de humanos produzidos por nossa desigualdade, nosso racismo e nossas escolhas políticas.
Este livro também é um encontro de gerações. De um pai que viu a favela ser tratada como problema e passou a vida tentando provar que ela pode ser parte da solução. Com um filho que cresceu vendo a favela mais autônoma, produzindo dados, empresas, cultura, economia e, ao mesmo tempo, enterrando amigos jovens que não tiveram tempo de escolher outro caminho.
Escrever juntos é um gesto raro nas favelas: filho e pai lado a lado, não num velório, mas numa mesa de trabalho, tentando empurrar o futuro um pouco para fora da estatística. “Humanos” é, antes de tudo, um convite e também um incômodo.
Convite ao poder público para discutir segurança junto com educação, trabalho, renda e cidade. Convite à imprensa para ir além da manchete do dia seguinte. Convite à academia para dialogar com quem vive o que os livros descrevem à distância.
Convite ao país para admitir que o tráfico não começa no primeiro tiro, mas na primeira porta que não se abriu e, a partir dali, outras portas vão se abrindo, dando acesso ao caos.
Se quisermos um futuro em que nenhum jovem precise escolher entre sobreviver e sonhar, teremos que olhar de frente para esses humanos que o Brasil preferiu empurrar para o escuro.
Este livro é a nossa tentativa de acender uma luz a partir da favela, com dados, memória, afeto e a teimosia de acreditar que, enquanto houver gente disposta a ouvir, ainda há alguma chance de mudança.
Fonte ==> Folha SP