Quando eu era adolescente e estava apaixonada por algum rapaz, começava a enxergá-lo em todos os lugares por onde ia. Se era moreno com os cabelos cacheados, qualquer moreno que aparecesse com esse tipo de cabelo já me acionava o alerta. Se era loiro, a mesma coisa. Claro que não conto nenhuma novidade, a paixão faz esse tipo de coisa. Minha atenção estava toda voltada a essa paixonite e então eu via o garoto em todo canto.
Hoje em dia, o algoritmo do Instagram me mostra tudo que diz respeito ao alcoolismo. Todos os amigos, médicos e parentes que sabem da minha condição me mandam mensagens, artigos e novidades sobre o assunto. Adoro quando recebo mais informações sobre a doença.
Semana passada estava no parque ouvindo um ótimo podcast investigativo que o Café da Manhã, da Folha, lançou em quatro episódios. Chama Dois Mundos e investiga a morte de um indígena em Manaus, explorando as circunstâncias e falhas na investigação policial. Ele havia ido à capital para acompanhar sua mulher, que estava prestes a parir, e foi encontrado morto.
No segundo episódio, vem à baila o gravíssimo problema do álcool entre os indígenas, quando eles saem de suas aldeias para ir a centros comerciais a fim de resolver questões burocráticas. Fiquei sabendo que existe uma lei no Estatuto dos Indígenas que diz: “Propiciar a aquisição, o uso e a disseminação de bebidas alcoólicas é crime contra os indígenas e contra a cultura indígena. A punição prevista é de seis meses a dois anos.”
Já havia lido algo a respeito, claro, mas ali na quietude daquele parque, no meio das árvores, a notícia me pegou de um jeito especial. Tanta coisa me passou pela cabeça. Fiquei pensando nos indígenas que vivem na floresta, que sabem tudo da floresta mas que não dominam o português, na dificuldade que eles encontram em diversas esferas. E eu ali, naquele parque, com tanto verde e pássaros distintos, sem saber identificar nada. Parece óbvio, eu sei, mas naquele momento tive consciência de como são dois mundos distintos.
Quando eu tinha treze anos, o álcool não me dizia nada, eu era virgem da substância. Mas naquele momento passei por questões tão sofridas que resolvi experimentar aquela bebida que me ofereciam, quem sabe ela não aliviaria meus traumas e minhas dores.
Um dos meus psiquiatras me perguntava frequentemente o que seria de mim se eu vivesse em um país em que não existisse bebida alcoólica. Na época, eu ainda estava na ativa e achava aquilo uma insanidade. Não existia vida sem álcool para mim.
Se eu descrevesse para a Alice da ativa minha vida atual, ela riria na minha cara. Mas é isso, na minha vida não existe mais o álcool. Eu consegui superar, um dia de cada vez, esta ausência.
Não sei se posso dizer que gostaria de nunca ter tocado em uma bebida, para que não me acontecesse tudo o que aconteceu. Aprendi demais com toda a trajetória alcoólica. Posso dizer que só sou quem eu sou porque sou alcoólatra. Não me obrigaria a fazer exercício, não gostaria de tantas coisas saudáveis etc.
Daí penso nos indígenas que se sentem tão perdidos em centros urbanos que acabam numa garrafa.
Fonte ==> Folha SP