Endurecemos cedo, antes do amanhecer de qualquer desejo e nada disso foi especial. Não no começo de tudo, de nós. Olhamos para o pai —quase sempre o pai!— a não nos buscar na escola, não nos olhar nos olhos, não nos interpretar pelo soluço.
O pai que castra, o primeiro “homem com h”, também foi o pai que buscávamos em silêncio quando tínhamos medo dele próprio. Encefálico, aquele Cronos iliterato sem drama o suficiente para teatralizar o amor paterno tal como o materno. Sua tragédia era a de si mesmo. Enfático, dizia o homem maiúsculo o que deveríamos ser, mas minúsculo escondia o que era.
A palavra de ordem é que batia forte. Roxeava um corpo crescendo primeiro dentro da mente, depois debaixo do peito. Descruzar pernas, enrijecer pulsos, fingir que o calor não dava vontade de usar shorts e fazer jus ao seu nome ou dormir com frio na barriga por pensar que seu “h” não era maiúsculo o bastante. Surras vinham como desviar de olhos que deveriam cuidar, e pedidos de desculpa que nunca tocariam o coração machucado. Aí o pai some —se sumido ainda não tivesse.
Amadurecemos tarde, viramos um só, mas não qualquer um só. Queremos outro “Homem com H” em vez de mulher com amor. Queremos os dois a sós.
O perfume da fruta, então, invade a cozinha. A pia, a mesa e a geladeira se vestem de quitanda. Boca suculenta feito caqui, doce também, o outro Homem com “H” parece ter uma dúzia de dedos quando se tocam nossas mãos e passam a tratar os calos como nós. Dois atados e seus afagos num embaraço gigante. O que esperar do outro, ali, desconhecido de sobrenome, mas tão familiar no olhar que, agora, não desvia?
Só sabia eu, e agora apenas eu —chega de nós!—, o esforço hercúleo despendido para não carregar a culpa pelo “Homem com H” que parecia não ser. E só eu desconhecia que, na verdade, a força maior se revelaria no momento quando dois “Homens com H”, juntos, eram minúsculos diante do desejo. Juntos…Até parece mentira. A coragem de querer superou a covardia do não ter. Para isso, só sendo louco, como diziam e dizem até hoje. Loucos, agora sim, novamente nós.
Homem, sem o “h”, parecia alvo fácil. Homem não era, então qualquer tiro seria na mosca. Não tinha erro. Algo faltava em abundância dentro de mim e daqueles com quem aqui troco letras. Faltava Orestes, sobrava Electra. Um dia ele veio, assumiu sua liberdade e se condenou a ela. Vingou-se do —e não pelo— pai, encarou as consequências e levou consigo a moscaria culposa. Retomou o “H” do seu Homem.
Não foi a tragédia de si mesmo.
Sem agá minúsculo, ou sem agá maiúsculo, na dúvida, apenas um completo complexo é o homem. Se gosta de homem, se é desse tipo “mal escrito” na rigidez gramatical da masculinidade, tudo piora para os outros, do tipo que pensam e grafa em CAIXA ALTA, com falsa sintaxe moral. Para ele, o amante de “Homens com H”, contrário à subordinação da dita ordem natural das coisas; para ele, cá entre nós —que tantas danças dançamos, primeiro sem nos tocarmos, depois sem nos largarmos—, não poderia haver algo melhor do que pagar o preço sartriano pela liberdade.
Libertamo-nos cedo, antes mesmo de saber da angústia de carregar, com caquis e calos, o “Homem com H” que somos. “E como somos”.
Fonte ==> Folha SP