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Reduzir crítica a preconceito envenena democracia – 01/07/2025 – Wilson Gomes

No meio de uma tempestade apocalíptica como pano de fundo em preto e branco, uma mão empunha um raio como se tivesse acabado de roubar o poder de Zeus — mas com as unhas recém-feitas… No antebraço dessa “entidade superior”, surge um olho, meticulosamente maquiado por duas mãos externas que usam pincéis delicados e pinças de depilar. É como se a verdade precisasse de retoque estético. A composição sugere que o olhar vigilante das minorias identitárias é cuidadosamente produzido por mãos de terceiros — talvez assessores parlamentares com diploma em maquiagem — enquanto o mundo desaba ao fundo. Um esboço visual da fabricação da autoridade moral blindada: estética, performática e imune a críticas.

Caros críticos, detratores e discordantes, saibam que eu sei que vocês só fazem isso comigo porque não sou branco, sudestino ou rico. O que automaticamente transforma críticas, ataques e divergências dirigidas a mim em atos infames de preconceito —e, portanto, condenáveis por qualquer tribunal moral.

Um argumento desconfortável para vocês e muito conveniente para mim, não é? Já ganhei a discussão antes mesmo de lutar e ainda posso usar essa premissa como uma espécie de imunidade preventiva em qualquer situação futura.

Afinal, o que poderia ser melhor do que o poder de desmoralizar antecipadamente qualquer acusação e de desqualificar qualquer crítico? E sem precisar apresentar razões ou evidências, apenas sendo quem eu sou: a vítima mais merecedora.

Uma sociedade que considere isso um modelo normal de discussão pública está no caminho errado. Um debate baseado nessa lógica é viciado, desonesto e injusto. Implode o princípio do melhor argumento e assume que algumas pessoas, ao reivindicar o status de vítimas, gozam de privilégios morais especiais.

Pois é exatamente isso que a ideologia identitária, tão em voga, propõe. E serve para qualquer situação. Serve como estratégia de defesa de acusações objetivas, como no caso de Silvio Almeida ou Erika Hilton, ou como forma de criar controvérsia moral em qualquer ocasião, como na morte de Juliana Marins.

No último caso, uma tragédia —dessas capazes de unir o país— foi usada para dividi-lo. Comentários laterais sobre o comportamento da publicitária —sugerindo imprudência, falta de preparo, exposição a riscos desnecessários— foram o pretexto para o modo como os identitários se apropriaram da história e da pessoa para transformar essa tragédia em um espetáculo de denuncismo e vitimismo.

De repente, não se tratava mais apenas de uma jovem tragicamente morta, mas de um ícone da luta pelo direito das mulheres negras à liberdade. Manifestos proclamavam que Juliana encarnava a coragem e a autonomia de todas, mesmo sem que qualquer argumento contrário tivesse sido de fato apresentado.

O luto e o respeito à dor da família ficaram em segundo plano ante o imperativo da guerra moral. A pessoa concreta, com nome e história, transforma-se em artefato simbólico de um movimento.

No caso de Erika Hilton, repetiu-se um roteiro conhecido: qualquer acusação, mesmo baseada em fatos objetivos, é recodificada como perseguição política ou preconceito. Toda denúncia vira combustível para reforçar a própria identidade de vítima.

E há um contexto histórico particularmente sensível no país, com fartas histórias de uso indevido de dinheiro público para sustentar assessores fantasmas, repasses irregulares e esquemas de “rachadinha“.

Por isso mesmo, soa especialmente contraditório ver uma parlamentar de esquerda —cuja retórica moralizante se baseia na denúncia das relações imorais entre políticos e assessores pagos com recursos públicos— contratar maquiadores como assessores e, ao que tudo indica, beneficiar-se dos seus serviços particulares.

Mas a defesa não foi “errei, peço desculpas, vou corrigir”. Resumiu-se a desqualificar os acusadores: se houve erro no episódio, não consistiu na contratação de maquiadores como assessores parlamentares, mas na acusação descabida feita por homens brancos, héteros e cisgênero —o “combo maldito” que a ideologia identitária considera culpado de tudo.

Por que um deputado identitário precisaria manter um elevado padrão republicano de conduta se já existe, sempre à mão, um bode expiatório a quem se pode atribuir toda responsabilidade?

Assim como todo membro de minoria é moralmente superior não em função do que faz, mas de sua identidade de vítima, toda pessoa que não é trans ou não pertence a minorias sexuais ou raciais ou que se recusa a viver sob o dogma da culpa hereditária é errada por sua própria natureza. Mesmo que não discrimine enquanto indivíduo, ainda assim é culpada por integrar a categoria dos que historicamente oprimiram e se beneficiaram da opressão.

E pedir desculpas e emendar-se, para quê? Afinal, se o argumento “vocês só fazem isso comigo ou com ela porque somos parte de uma minoria racial ou de gênero” encerra qualquer questão e cala qualquer razão, por que assumir vacilos e erros ou até mesmo cuidar para ter um comportamento público que seja impecável? Isso é desnecessário.

É claro que críticas preconceituosas e racistas existem e devem ser combatidas. Mas a ideia de que toda crítica a qualquer conduta seja por definição preconceito e racismo é um veneno para o debate democrático.



Fonte ==> Folha SP

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