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O filme “Réquiem para um Sonho” estreou 25 anos atrás dividindo opiniões.
Foi ovacionado na sessão da meia-noite no Festival de Cinema de Cannes pelos três mil espectadores presentes no auditório.
Quando as luzes foram acesas, Hubert Selby Jr — autor do livro de 1978 que inspirou o filme — foi visto chorando.
O crítico Peter Bradshaw, do jornal britânico The Guardian, chegou a afirmar com entusiasmo que o diretor Darren Aronofsky havia alcançado as lendárias alturas de Orson Welles em termos de “energia, consistência e domínio absoluto da técnica”.
A recepção foi muito diferente, porém, no Festival de Cinema de Toronto, onde alguns espectadores chegaram a vomitar durante a sessão.
Com uma classificação para maiores de 17 anos, o filme arrecadou apenas US$ 7,5 milhões (R$ 41,5 milhões na conversão atual) diante de um orçamento de US$ 4,5 milhões (cerca de R$ 25 milhões), e foi duramente criticado por alguns comentaristas.
Jay Carr, do Boston Globe, descreveu seu incômodo ao dizer que a obra “se refugia em uma visão do inferno nascida do conforto burguês”.
O que dividiu a opinião da crítica foi a forma como ‘Réquiem para um Sonho’ retratava os dependentes químicos, com detalhes cruéis em primeiro plano.
O filme mostra uma viúva, Sara Goldfarb (interpretada por Ellen Burstyn), que acaba viciada em pílulas para emagrecer com objetivo de participar de um concurso de TV.
Enquanto isso, seu filho Harry (Jared Leto) e seu melhor amigo Tyrone (Marlon Wayans) tramam um plano para ficar ricos vendendo heroína. Quando as coisas se complicam, eles pressionam Marion (Jennifer Connelly), noiva de Harry, para trocar sexo por drogas.
A trama se desenrola como um turbilhão que os arrasta para destinos terríveis: torturas com choques, amputação de um braço, alistamento de um grupo de trabalho penitenciário supervisionado por um guarda racista e exploração sexual.
Darren Aronofsky quis oferecer ao público um bombardeio sensorial que imitasse a experiência do vício. Mas terminou fazendo muito mais do que isso, provocando sérios debates sobre o livre arbítrio do dependente químico, a linha tênue entre a observação compassiva e o voyeurismo explorador, e o canto da sereia tóxico do próprio sonho americano.
Vinte e cinco anos depois, esses debates permanecem latentes.
‘SOMBRIO E IMPLACÁVEL’
A ideia do filme surgiu quando o produtor Eric Watson viu uma cópia do romance de Selby na estante de Aronofsky, em 1998.
“Darren me disse que teve que parar a leitura pela metade. Era sombrio demais, implacável, e isso me intrigou”, disse Watson à BBC.
“Perguntei se ele poderia me emprestar o livro para ler durante uma viagem de esqui com meus pais. Aquilo arruinou completamente as minhas férias!”, lembra.
“Ao voltar, disse a Darren: ‘Temos que fazer esse filme’. Então, compramos os direitos do livro por mil dólares, e Darren escreveu o roteiro.”
Aronofsky e Watson enviaram o roteiro a todos os grandes estúdios. A resposta? “Silêncio”, recorda Watson. “Ninguém sequer se deu ao trabalho de nos ligar para recusar.”
Sem desanimar, conseguiram a metade do financiamento de que necessitavam da Artisan Entertainment e contrataram um produtor independente, Palmer West, para ajudar a levantar o restante do orçamento.
O processo de seleção do elenco também foi bem complicado.
“Tobey Maguire, Adrien Brody, Joaquin Phoenix, Giovanni Ribisi… Todos chegaram a considerar o projeto e se apresentaram na audição para interpretar Harry, mas acabaram recusando o papel”, recorda Watson.
“Era um risco muito grande para as carreiras deles.”
Uma vez escolhidos, Leto, Connelly, Wayans e Burstyn se dedicaram para trazer autenticidade às suas interpretações.
Leto perdeu 11 quilos e passou um tempo convivendo com dependentes de heroína no East Village, em Nova York. Wayans caminhou sem camisa pelas ruas geladas de Brighton Beach, no Brooklyn, em pleno fevereiro.
Já Burstyn simulou a perda de peso de sua personagem usando uma roupa de 18 quilos nas primeiras cenas, mudando depois para uma de 9 quilos e, finalmente, pegando duas semanas de descanso e perdendo 4,5 quilos com uma dieta restrita de sopa de repolho.
REPRESENTANDO O VÍCIO DAS DROGAS
Inspirado pelos enquadramentos de Spike Lee em “Faça a Coisa Certa”, Aronofsky utilizou tomadas com SnorriCam (câmaras acopladas no corpo do ator) para transmitir a sensação de dissolução da realidade externa.
A isso, adicionou o uso de telas divididas, acelerações e desacelerações, movimentos de câmera em espiral, lentes olho de peixe, planos gerais extremos, pixelizações e encenações surrealistas.
Todas eram ferramentas para imitar distorções sensoriais provocadas pelas drogas.
Mas, embora os efeitos visuais gerassem entusiasmo, a visão do filme sobre a dependência gerou controvérsia.
Enquanto “Trainspotting” (1996) havia sido criticado por glorificar a estética da “heroína chique”, “Réquiem para um Sonho” foi visto como um retrato incessantemente sombrio do consumo de drogas.
A imagem da “espiral” tornou-se a metáfora preferida da crítica para descrever a ideia do filme de que os dependentes, uma vez viciados, são arrastados quase que inevitavelmente para desfechos terríveis.
“Lamento dizer que a forma como o filme retrata a trajetória da dependência da heroína é notavelmente precisa”, afirma David J. Nutt, professor de neuropsicofarmacologia no Imperial College de Londres.
“A maioria começa a usar por desespero ou falta de esperança, mas muitos, como Harry e Tyrone, veem o tráfico como uma aventura empresarial, uma forma de ganhar dinheiro rápido para depois seguir com suas vidas. Mas raras vezes isso termina bem.”
Por outro lado, o professor Nutt considera Sara Goldfarb como um símbolo de toda uma geração de donas de casa das décadas de 1950 e 1960, às quais foram prescritas anfetaminas sem a devida supervisão médica.
Quanto ao destino de Marion, ele afirma que, hoje em dia, “os cafetões continuam controlando e abusando das mulheres, explorando suas dependências”.
Mas, segundo Nutt, o mais importante no filme é que ele dramatiza o vício como um transtorno químico cerebral que leva a comportamentos compulsivos.
“Você não volta a usar pontos de injeção extremamente dolorosos a menos que esteja preso a impulsos irresistíveis”, afirma.
Nem todos os especialistas em dependência química concordam com essa visão.
Gene Heyman, professor titular do departamento de Psicologia e Neurociência da Boston College, disse à BBC que “Réquiem para um Sonho” descreve de forma admirável a euforia do início no uso das drogas, seguida por episódios de abstinência cada vez mais intensos e dolorosos.
Mas aí termina sua precisão.
“Esse filme conta uma história conhecida: uma vez viciado, sempre viciado, e que necessariamente é uma trajetória descendente da qual ninguém se recupera”, disse Heyman.
“E isso é completamente falso. Todos os dados epidemiológicos mostram que, aos 30 anos, a maioria dos consumidores habituais de drogas amadurece e para de usar, não recaem, e fazem isso sem tratamento ou intervenção profissional. Isso são os dados, não é a minha opinião. Estão aí para que todos vejam.”
O SONHO AMERICANO
Watson se mostra irritado ao responder perguntas sobre a veracidade da dependência química em “Réquiem para um Sonho”.
“Hubert Selby foi muito ativo no AA e no NA [Alcoólicos Anônimos e Narcóticos Anônimos], mas nosso filme nunca teve a intenção de ser um documentário ou um panfleto sobre o caminho da recuperação”, disse.
“Não, não é realista. É surrealista. Relaxem.”
O próprio Selby sempre insistiu que via a dependência química apenas como uma manifestação do poder sedutor do sonho americano e dos efeitos tóxicos que acreditava que esse sonho causava.
Antes da estreia do filme, escreveu um novo prólogo para seu livro, que dizia: “Obviamente, acredito que perseguir o sonho americano não é apenas inútil como é autodestrutivo, porque, em última instância, ele destrói tudo e todos que fazem parte dele.”
Muitos críticos chegaram a considerar que “Réquiem para um Sonho” iria na mesma linha de “O Grande Gatsby” (1925) e “Revolutionary Road” (1961), obras que revelam o lado obscuro do mito americano.
Com sua televisão e comida processada, o filme está inserido em um ambiente de vícios tipicamente norte-americanos, afirma Kevin Hagopian, professor de Estudos de Mídia da Universidade Estadual da Pensilvânia.
“O concurso de TV que fascina Sara gira em torno de criar uma alegria ansiosa, exagerada e falsa”, diz.
“Aqui, há uma busca desmedida por panaceias irreais, um atalho para uma solução rápida, só para nunca precisar pensar no propósito da vida. Aqui, o sonho americano não é algo a ser perseguido, mas sim o vilão definitivo. E essa crítica é tão devastadora para os mitos que nos sustentam que não é de estranhar que muita gente se recuse a aceitá-la.”
Danny Leigh, hoje crítico de cinema do jornal Financial Times, elogiou efusivamente “Réquiem para um Sonho” na revista Sight and Sound quando o filme foi lançado.
“Me fascinou pelo que era: sem dúvida, uma obra cinematográfica cheia de estilo, com vigor cru”, disse à BBC.
“‘Trainspotting’ havia sido um marco cultural profundo, que desencadeou um momento de euforia na cultura britânica da época, e vi ‘Réquiem para um Sonho’ como uma correção poderosa, um alerta que bateu com força.”
No entanto, com o passar dos anos, Leigh passou a ter reservas quanto à obra de Aronofsky.
“Passei a sentir que há uma certa lascívia em seu cinema, como se ele se intrometesse em situações emocionalmente desesperadoras e aplicasse uma condescendência desagradável, até mesmo voyeurista, a circunstâncias trágicas.”
Leigh acredita que esse impulso tenha chegado ao seu extremo mais grotesco em “A Baleia” (2022), em que um professor de inglês solitário e com obesidade mórbida, interpretado por Brendan Fraser, come até morrer.
Hagopian, por outro lado, considera que Aronofsky tem demonstrado uma curiosidade genuína em compreender as pessoas marginalizadas da sociedade.
“Muitos filmes experimentais criam o que eu chamaria de ‘pesadelos de distanciamento psíquico'”, opina.
“Pensem em ‘Veludo Azul’ (1986), de David Lynch, ‘A Professora de Piano’ (2001), de Michael Haneke, ou ‘Precisamos Falar Sobre o Kevin’ (2011), de Lynn Ramsay. Em todos eles, nunca saberemos o que realmente pensam e sentem os personagens.”
“Réquiem para um Sonho”, por outro lado, adota o caminho oposto, ao fazer o que ele chama de “pesadelo de intimidade psíquica”.
“Nos vemos tão perto dos personagens que, em certo momento, suas dores e traumas parecem entrar na nossa consciência. Pode ser claustrofóbico e até invasivo. Mas, para mim, esse é o tipo de cinema mais corajoso, e isso explica por que essa obra de arte, seja você fã ou não, fica para sempre gravada da memória de quem assiste.”
Esse texto foi publicado originalmente aqui.
Fonte ==> Folha SP