Antes de a bola rolar, o roteiro parecia previsível: os clubes europeus dominariam o novo Mundial de Clubes da Fifa, enquanto os latino-americanos fariam figuração.
Alguns sul-americanos como Flamengo e Palmeiras poderiam avançar até as quartas. O Boca Juniors, com sua camisa pesada, traria mística — mas pouco futebol. E o restante do continente? Apaixonado, sim. Competitivo, não. Era essa a expectativa dominante em análises, rankings e mesas redondas: a América Latina teria papel coadjuvante num torneio desenhado para confirmar o protagonismo europeu.
Nos mais de 100 mil grupos de WhatsApp monitorados em tempo real pela Palver em países como Brasil, Argentina, Bolívia, Paraguai e México, as mensagens sobre o Mundial cresceram 1.000% desde o início da competição.
Flamengo, Boca, Botafogo, River e Palmeiras lideram com folga o volume de menções, superando inclusive gigantes europeus como Chelsea, PSG e Bayern. Nos grupos monitorados em todo o continente, o Mundial não aparece só como um torneio. Para milhares de torcedores, ele representa um momento em que os sul-americanos podem desafiar o favoritismo europeu não só com talento, mas com história e orgulho.
Rivalidades internas parecem perder força quando o adversário vem de fora. Nos grupos analisados, torcedores do Flamengo e do River celebraram a vitória do Botafogo sobre o PSG, e palmeirenses vibraram com o triunfo rubro-negro sobre o Chelsea —gestos impensáveis em outros contextos. O sentimento que emerge é o de “nós contra eles” que transcende clubes: de um lado, a América do Sul, passional, subestimada, coletiva; do outro, a Europa, rica, técnica e distante. A disputa deixa de ser apenas entre times e passa a ser entre formas de viver e sentir o futebol.
Expressões como “os caras falando que o Botafogo ia tomar de montão, esses baba ovo de gringo” ou “para com isso, torcer para europeu nunca” se repetem em diferentes contextos. Em muitos grupos, a vitória do Flamengo sobre o Chelsea não foi lida apenas como uma conquista esportiva, mas ativou discursos de afirmação regional, contrapondo o clube brasileiro ao poder econômico e técnico europeu. O mesmo vale para o Botafogo, que derrotou o PSG, o atual campeão da Champions League. A vitória foi celebrada como o triunfo da garra sobre o investimento, da ousadia sobre a máquina.
Essas leituras não são exceções. O Mundial, como mostra o monitoramento da Palver, catalisa um sentimento difuso que, embora possa ser subjetivo, é recorrente: o de que o futebol pode corrigir assimetrias históricas. A lógica é simples —se não nos respeitam nas mesas de negociação, que nos respeitem ao menos nos gramados.
Mesmo quando perdem, os torcedores não abandonam a narrativa. Após a derrota do Boca para o Bayern, em grupos xeneizes circulavam mensagens do tipo: “quedó demostrado que somos MUY GRANDES”. A dignidade não se mede em títulos, mas em postura. A cada escanteio batido, há quem veja mais do que uma jogada —vê-se um ato político.
O WhatsApp se torna, nesse contexto, uma espécie de arena simbólica onde se compartilham análises, se espalham provocações e se constrói mitologia. É nele também que se afirma uma identidade coletiva: sul-americana, popular, emocional, vibrante.
Se a Fifa criou esse Mundial para capitalizar sobre a globalização do futebol, o monitoramento de WhatsApp mostra que os torcedores usam o evento para fazer outra coisa: disputar o lugar de seus países no imaginário do mundo.
Fonte ==> Folha SP