A lei é como uma régua rígida aplicada a uma superfície curva: inevitavelmente haverá pontos em que não encaixa. Ajustá-la às singularidades pessoais não destrói sua força, mas cumpre sua intenção mais profunda.
Aplicar a lei com equidade (“tratar desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades”) não é se desviar dela, mas uma forma de regulação. É um gesto de flexão, o movimento que dá à Justiça a sua maleabilidade, permitindo que a norma, sem se trair, reencontre o humano que pretendia proteger.
Esse princípio encontrou expressão viva no juiz Frank Caprio. Sua morte recente, aos 88 anos, deixa um vazio, mas também um legado que deveria fazer parte do currículo obrigatório nas faculdades de direito — e do coração de todos os magistrados.
Caprio defendia que a Justiça só é completa quando temperada pela humanidade. Conhecido como “o juiz mais gentil do mundo”, tinha o dom e a sabedoria de encontrar o espaço invisível que existe entre a letra rígida e o espírito da lei —o ponto exato onde se encontra a verdadeira Justiça. Fazia isso de forma quase pedagógica, durante décadas, diante das câmeras.
Em um dos vídeos mais comoventes, Caprio dá a palavra a um homem de 96 anos, multado por excesso de velocidade. O idoso explica que cometeu a infração porque levava o filho ao hospital, onde fazia tratamento contra um câncer. Depois de fazer algumas perguntas, Caprio perdoa a multa e diz: “O senhor é um bom homem. … Nos seus 90 anos continua a tomar conta da sua família. É maravilhoso.” O homem sai com lágrimas nos olhos, sustentado pela dignidade de sua história.
Em outra audiência, uma mãe chega com seu filho pequeno, por não ter com quem deixá-lo. Caprio puxa conversa com o menino e o nomeia “juiz auxiliar”. Pergunta se o garoto queria que a mãe pagasse a multa inteira, metade ou nada. O menino responde timidamente: “nada”. Caprio dá a martelada confirmando: “Está decidido, nada!”.
Caprio, no entanto, sabia dar sentenças duras. Quando a infração revelava desrespeito ou risco real à coletividade, não hesitava em aplicar uma condenação severa. Fazia isso sem perder a voz serena de quem sabia que a lei existe para servir à pessoa, não o contrário.
O gesto de trazer a lei de volta ao humano é o que separa um juiz burocrata de um juiz sábio. Não se trata de sentimentalismo, mas de um fundamento vital da Justiça, muitas vezes esquecido pelos magistrados. Aplicar a severidade da lei e agir com sensibilidade não são excludentes; é justamente na conjugação dessas forças que a Justiça se realiza em sua plenitude. O bom juiz é aquele que consegue encontrar o equilíbrio entre esses antagonismos.
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É nesse ponto que o contraste com a nossa realidade se torna visível. Por aqui seguimos cultivando o fetiche pela toga solene, o formalismo processual (que tantas vezes perpetuou impunidades) e por decisões herméticas, genéricas, pré-fabricadas, que pouco dialogam com a vida real de quem procura a proteção do Estado.
Caprio ousou o que poucos juízes ousam: não ser arrogante. Resistiu ao narcisismo que ronda o poder e, com essa humildade, escutava com atenção genuína, enxergava histórias em vez de processos, pessoas em vez de números. Até o fim, buscou a sentença justa para cada história, prova de sua fé persistente na humanidade —essa foi a sua maior ousadia.
Fonte ==> Folha SP